🔓 Poesia, romance e diversidade editorial

A final do Prêmio Jabuti, com cinco mulheres na categoria Poesia, mostrou que o argumento das vendas serve para quase tudo, menos para intimidar poetas
Ilustração: Denise Gonçalves
14/12/2021

Ainda ouço as vozes da cerimônia do 63º Jabuti. É claro que meu coração bate mais ansioso por algumas categorias do que por outras. Trabalhar nos bastidores do prêmio torna tudo mais difuso, mas não dá para conter aquela tensãozinha extra na hora da revelação dos vencedores em poesia e romance, por exemplo, ou projeto gráfico e capa, duas coisas fascinantes. Neste 2021, muita coisa bonita aconteceu, não perceberam?

Pode não ser na proporção que cada um(a) quer, mas olha! Lá de dentro deu para ver: muito mais sotaques e endereços no júri, muito mais livros inscritos, a poesia imperando nos números, a literatura para crianças (?) ganhando o “livro do ano”, só mulheres concorrendo na poesia. Não é que seja vingança, é que nunca tinha acontecido. Infelizmente, a autora vencedora nos poemas foi colhida pela Covid-19 antes de receber a estatueta. A editora? Independente, firme e forte.

Bom, não é mais novidade ver as editoras pequenas, ditas independentes, pululando nos envelopes abertos. O negócio é a quantidade de pulgas que ainda fazem coçar nossas orelhas nessas ocasiões. Vejamos: a poesia é a categoria que recebe, disparado, mais inscrições. E olha que não é barato participar. A maioria desses livros foi editada, como é de se esperar, por editoras pequenas, corajosas, inspiradas. É maravilhoso ter cinco autoras na finalíssima do maior prêmio do país, mas o fato de elas estarem na categoria — comercialmente — menos prestigiosa também pode dizer algo (tem prêmio grande que nem se dá ao trabalho). No romance literário, categoria simbolicamente mais disputada, ainda estamos longe dessa (dis)paridade. Pensando aqui em gênero, mas não em raça; se o lance for outro, o livro vencedor de romance já responde alguma coisa.

Não vende, mas e daí?
Qualquer pessoa que escreva e que se insira na conversa literário-editorial do país (e do mundo) ouvirá que livro de poesia não vende, que poesia é um gênero difícil, etc. É uma canseira. No entanto, parece que poesia é dos gêneros mais escritos e mais atrevidos, além de mais presentes. O argumento das vendas serve para quase tudo, menos para intimidar pessoas que a querem escrever e publicar. É só procurar saber da experiência de júris de prêmios e concursos de qualquer tamanho: é muito mais poesia do que prosa. (Não vou adentrar o papo da poluição e da qualidade).

No entanto, na escola a poesia é lateral (e olhe lá); nos livros didáticos ela é cosmética; nas livrarias ela costuma estar nas prateleiras dos fundos, embaixo; nas nossas vidas ela costuma aparecer em momentos revolucionários, mas só para quem lê muito. Poesia anda junto com palavras como difícil, ilegível, incompreensível, complicado, complexo, inútil, supérfluo, mas só para quem se engana. Poesia, no sentido comercial, talvez seja o gênero que mais exige peito, raça, persistência e a tal de resiliência.

Quem publica poesia tem muitas experiências com o não, outras tantas com aquele impulso forte dos que passam a fazer por conta própria. Vários e várias editores começaram seu trabalho editando livros próprios, e não é de hoje. Nos mercados e no discurso neoliberal, chamam a isso de empreendedorismo; na poesia, é batalha e certo desdém pelo fracasso.

Pequenas raçudas
Tenho muitas razões para admirar as editoras pequenas, independentes, embora elas não sejam deuses, não resolvam tudo e não sejam só heroicas ou bem-intencionadas. Um desses motivos é que são elas, e quase sempre foram, que cultivam a imensa variedade da poesia que se faz num país, incluindo o nosso. Se tomarmos duas ou três editoras enormes (e hoje elas quase só são ou enormes ou pequenas), a poesia só estará no catálogo quando for dada como certa: ou os poetas do cânone, em especial o escolar, geralmente estacionado no tempo/espaço passado, ou a meia dúzia semicanonizada do agora, que funciona como uma ciranda fechadíssima. No mais, a poesia viverá livre e vigorosa, fora desse pequeno círculo. De vez em quando, alguém saltará para um anel mais interno desses universos, mas é isso, com pequeníssimas outras chances.

Na final do Jabuti estiveram cinco autoras poetas. Todas publicadas por casas pequenas e/ou peculiares: Relicário, Quelônio, Urutau, CEPE e Martelo. As duas primeiras são dirigidas por mulheres incríveis, as editoras Maíra Nassif (em BH) e Sílvia Nastari (em SP capital, num esquema também de tipografia); a Urutau está sob a direção de Thiago Rendelli, que atua desde o interior do estado de São Paulo e tem um pé forte na Galiza/Espanha, com um projeto lindamente binacional; a Martelo atua desde Goiânia, GO, sob a batuta de Miguel Jubé; e a CEPE é algo de muito importante que o Brasil tem relativamente pouco: uma editora a serviço do público, na verdade de economia mista, fundada em 1924. A Companhia Editora de Pernambuco tem feito um trabalho impressionante, com curadoria impecável e projetos editoriais lindos. Aliás, é dela o livro de Cida Pedrosa, a vencedora dos Jabuti de poesia e de Livro do Ano em 2020. Então: privado de pequeno porte ou público. Sem isso, a poesia míngua bem (em número, não necessariamente em qualidade, mas é que a qualidade pode estar mais espalhada e menos visível do que pode parecer).

Publicação x gênero editorial

Agora vamos lá espiar no romance. Editoras, o que temos? Vou silenciar aqui (talvez eu deva, mas não me aguente). Em quase todas as categorias do Jabuti, é possível ver a diversidade editorial avançar, em especial pelo trabalho inquieto, intenso e persistente de pequenos selos quase sem apoio, dispersos, espalhados pelo país todo (dispersos mas não ilhados, frise-se); o trabalho miúdo (de formiguinha), corajoso e quase sem fôlego de pessoas que são sua própria equipe; o trabalho-trabalhoso, muitas vezes dependente de escambo, colaboração e parceria, sem financiamento e sem marketing poderoso; quase sem distribuição; em tiragens modestas. Mas quem disse que tiragem faz poeta? Vou me abster da imensa lista de exemplos.

No romance, por mais diversos que sejam os textos e autores, acontece o fenômeno da “sudestização” ou do “raio sudestizador” (para não ser ainda mais geoespecífica), e tudo sai mais ou menos da mesma planta.

Conta outra
É curioso quando um(a) romancista, no afã de criar sua persona artística, inventa desculpas para não publicar poesia; ou quando pensa justificar a publicação tardia de uns versos, apenas depois do estabelecimento relativo de sua obra em prosa. Às vezes, soa humilhante para poetas-só-poetas. Elogios a uma tal característica “especial” da poesia, ao encantamento, à nobreza, à altura em que ela está posicionada em relação à mundanidade da prosa; desculpas por não ter coragem, para não macular tão alto labor; timidez e impropriedade. Ora, vá. Muita gente descobre logo que publicar poesia dá muito mais frustração e bem menos camisa/eventualmente grana/roteiro de série ou cinema. Na poesia, os(as) agentes literários(as) não te procuram, não te querem, acompanhando a tendência dos(as) editores(as) das casas maiores em que se quer estar. Convenhamos, admitamos: é osso. A livraria vai te subestimar, com raras exceções (ave!), e os prêmios serão muito mais difíceis de vencer, pois a concorrência é incontável. Talvez apenas um conselho: não concorra com aquela meia dúzia de semiconsagrados(as), geralmente nas enormes editoras (o semi, ali, é porque ainda não deu tempo; não é desdém). Suas chances aumentarão bastante, embora isso não queira dizer nada em termos de glória e grana, traduções e mesas nos palcos mais visíveis. Pronto, fal(h)ei.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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