🔓 Poema dos porquês, de Laura Conceição

O poema enfileira, sem trégua, uma longa lista de perguntas cujas respostas são tão evidentes quanto complexas
Laura Conceição, autora de “Poema dos porquês”
01/02/2023

Por que o rap feminino não tem visibilidade?
E esporte feminino não tem visibilidade?
Nem a arte feminina tem visibilidade?
E mulheres são descartadas quando
É visível a idade?

Por que roubam nosso dinheiro
Falando em fraternidade?
Exaltam a diferença pra falar de igualdade?
Pessoas dormem nas ruas bem no centro da cidade?
Há segundas intenções em todo ato de bondade?

Me diz, por que posso apanhar se namoro uma mulher?
Por que podem decapitar quando diferem cor e fé?
Quando o filho nasce, por que o pai mete o pé?

Por que a criança não acha uma explicação
Sobre a prisão injusta de seu pai num camburão?
Por que eles acham que saia justa é convite pra passar a mão?
E por que ninguém questiona nenhuma situação?
Por que homem pode encher a cara
E mulher não pode sentar no bar?
Por que a mulher que elegi não pode mais governar?
Poesia mais bonita é a lírica?
Mulher só com homem pode se relacionar?
Por que o preço sobe juntamente com a labuta?
Valorizam troféu, mas não valorizam conduta
Mulher em cargo de chefia até hoje te assusta
Homem golpista eles chamam de bom
Mulher presidente eles chamam de puta?
Por que a vontade não supera a preguiça?
A simplicidade não supera a cobiça?
Cês são fã do Tiririca já que pior que tá não fica, será que fica?
Por que eu tenho mais medo da polícia?
O boy estupra no sábado porque no domingo tem missa
Por que a ditadura da beleza vive impondo um padrão
Enquanto muitos na pobreza sem nenhuma refeição?
Por que pra eles hip-hop não é cultura, não?
Por que até hoje minha amiga não achou o corpo do irmão?
Enquanto isso, deputado em avião
Enquanto isso, cocaína em avião
E lá no morro, o menor é avião
Machista assoviando e chamando de avião
Me diz: por que mulheres morrem só por terem vagina?
E ainda mais mulheres morrem por não terem vagina?
Você sabe me responder? Ou ao menos imagina?
Tô procurando uma resposta pro tamanho da chacina

Há dezenas de interrogações, de questionamentos, de dúvidas nesse poema de Laura Conceição, publicado na antologia Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta (2019), com organização de Mel Duarte. Por que tantas perguntas? Já na página de créditos uma nota da editora informa que o livro integra “um projeto que preza pela força da oralidade e pela potência da palavra falada”. Além de uma apresentação da organizadora, há um prefácio de Conceição Evaristo, a preparação ficou por conta de Bruna Beber, e as 15 poetas formam — com Laura Conceição — um grupo bastante expressivo de todas as cinco regiões do Brasil: Anna Suav, Bell Puã, Bor Blue, Cristal Rocha, Dall Farra, Danielle Almeida, Letícia Brito, Luiza Romão, Luz Ribeiro, Mariana Felix, Meimei Bastos, Negafya, Roberta Estrela D’Alva e Ryane Leão. As tantas perguntas talvez venham por conta mesmo do histórico “peso do silenciamento” (Mel Duarte) imposto às mulheres, peso agora e cada vez mais enfrentado.

Na internet, se encontra com facilidade esse poema sendo lido (recitado, oralizado, performatizado, vocalizado) pela própria autora, com pequenas variações em relação ao poema do livro. Chama a atenção a ausência, no livro, de um verso que, na internet, encerra a terceira estrofe: “Por que querem embriagar o povo com Cereser?”. Possivelmente, sua retirada se deu em função de esse verso “destoar” da dicção séria que se espalha por todo o poema, com denúncias gravíssimas de múltiplas ordens. Ao se referir à popular sidra, uma espécie de “champanhe dos pobres”, o verso produz um imediato efeito humorístico. Antecedido por versos que falam de machismo, racismo e abandono de filho, é possível que a poeta tenha preferido deixar o hilário verso de fora. (O humor retorna, mais contido, à frente, na alusão ao palhaço e político Tiririca.)

O poema enfileira, sem trégua, uma longa lista de perguntas cujas respostas são tão evidentes quanto complexas, e um curto ensaio de crítica literária jamais alcançaria explicar os porquês de cada “por quê”. Não à toa, de saída o primeiro verso — “Por que o rap feminino não tem visibilidade?” ­— já reúne numa só expressão (rap feminino) duas instâncias relegadas à subalternidade: as manifestações populares de arte e a voz da mulher (na arte, no esporte etc.). A hipocrisia e a retórica da enganação parecem dar o tom conflituoso da segunda estrofe, em que caminham juntos a corrupção e a solidariedade, o respeito e o preconceito, a miséria e a opulência, a caridade e a má-fé.

A curta terceira estrofe, com três versos rimando em /e/, aborda o machismo (em versão lesbofóbica), o racismo, o fundamentalismo religioso e o também gravíssimo problema do abandono de crianças. Na literatura, recorde-se o conhecido caso de Zé Bebelo, de Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, que se orgulha de dizer com todas as letras: “Eu, José, Zé Bebelo, é meu nome: José Rebelo Adro Antunes! Tataravô meu Francisco Vizeu Antunes — foi capitão-de-cavalos… Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar Pacheco Antunes e Maria Deolinda Rebelo”. Tal orgulho se deve ao sentimento de não pertencer à imensidade de jagunços sem pai, abandonados — como, aliás, o próprio Riobaldo. Aliás, esse problema, longe de se concentrar no sertão brasileiro do início do século 20, se perpetua desde então, em rincões ou metrópoles. O “pai que mete o pé” é o pai que, sob quaisquer pretextos díspares e disparatados, foge, debanda, nega. Pai omisso, fraco, criminoso, covarde.

Após as três estrofes marcadas por oito rimas em “ade” e outras rimas entre “é, é, [é]r”, vem a quarta e última e longa estrofe com rimas emparelhadas em “ão” (4 versos), “a/ar” (4), “uta/usta” (4), “i” (5), mais “ão” (8) e mais “i” (4). Nada mais natural do que explorar à exaustão a sonoridade, como um “poema para ser lido em voz alta” (alta: em bom som e em modo seguro, decidido, grandioso). O slam, o rap, o hip-hop têm na oralidade radical um ponto afirmativo, decisivo, revolucionário. (Sobre essa dimensão do sonoro na poesia, recomendo o excelente livro A poética da voz: a performance da lírica contemporânea em língua portuguesa, 2021, de Olliver Mariano Rosa.) O leitor do slam é, antes, ou também, ou sobretudo, um ouvinte e espectador. As rimas mantêm a atenção e seduzem, o que não impede, evidentemente, que o artista elabore sofisticadíssimos jogos. Aqui, Laura Conceição consegue um efeito surpreendente quando rima, por exemplo, “avião/ avião/ avião/ avião”, por quatro vezes, com sentidos distintos: o meio de transporte elitizado (deputado) usado para fins espúrios (cocaína), o intermediário no tráfico (menor avião), a mulher atraente (que o machista assedia).

Na ausência de políticas que, com eficácia, resolvam ou respondam totalmente ou em parte os muitos problemas listados no Poema dos porquês, tem restado aos poetas exatamente se postarem como porta-vozes de tanta injustiça e desacerto. Estendo a reflexão de Márcio Seligmann-Silva dirigida aos perseguidos na ditadura brasileira aos perseguidos em nosso dia a dia: “Trata-se de uma luta que ainda não conquistou a sociedade e que está muito dependente de iniciativas das vítimas” (A virada testemunhal e decolonial do saber histórico, 2022). No poema de Laura, mulheres, mendigos, crianças, transexuais são vítimas de machismo, racismo, exploração, abandono, assédio, preconceito, misoginia, golpe (“Por que a mulher que elegi não pode mais governar?”), violência, estupro, assassinato.

Entre tantas questões, e tantos versos contundentes, até a poesia, ou certo modo de poesia, é contestada: “Poesia mais bonita é a lírica?”. Decerto, o poema tem em mira a concepção clássica, tradicional, popular de “poesia lírica” (que se consolida na estética de Hegel e ganha o mundo, com inevitáveis distorções), que, em síntese, se caracterizaria por ser uma expressão subjetiva de sentimentos a partir de valores e critérios estéticos tidos como adequados (entre os quais, maestria técnica, concisão, exatidão, intensidade, universalidade e novidade — “valores comuns aos escritores-críticos” indicados em Altas literaturas, 1998, de Leyla Perrone-Moisés).

Contudo, o poema de Laura Conceição não valoriza o troféu, valoriza a conduta, isto é, que a mulher possa usar a saia que quiser e sentar no bar quando quiser, que não se precise mais ter medo da polícia nem do estupro do macho criminoso religioso (“O boy estupra no sábado porque no domingo tem missa”), que todos tenham acesso à comida, que a orientação sexual de todos seja respeitada — a lista é imensa. Em sua obra, Laura Conceição assume sem temor o teor testemunhal da poesia. Suas performances em Tempos efêmeros (2018) dão mostra não só de sua vitalidade e inteligência, de sua crítica engajada e bem elaborada, mas também de sua geração e, sobretudo, de suas companheiras, na luta pela voz, pela autonomia, pelo fim do “peso do silenciamento”, pelo fim de toda chacina.

No ensaio Quando cantam os pensamentos (a pergunta como canto), em Anseios crípticos (1986), Leminski dá valor filosófico à pergunta: “É essa capacidade das línguas de formular perguntas que funda um mundo humano. A interrogação é o próprio fundamento do diálogo, o reconhecimento da diferença entre o eu, que eu sou, e o eu que o outro é, separados e próximos pela prática da linguagem, hiato e ponte. É a pergunta, o perguntar, que socializa, isto é, humaniza o homem”. Não há soluções fáceis (“Tô buscando uma resposta”) para as dezenas de perguntas em Poema dos porquês. Mas cada questão é precisa, necessária, urgente. Cada questão diz do “tamanho da chacina”, e testemunha ao mesmo tempo a precisão, a necessidade e a urgência de nos humanizarmos.

Com dois nomes — Laura e Conceição — de alta densidade lírica, e com poemas para serem lidos tanto em voz alta quanto em leve e consciente silêncio, a poeta funda um mundo humano, com perguntas que, só por existirem, já dizem do hiato que pede, exige, urge que a ponte se faça.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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