🔓 Please, send me a letter

Um livro em formato de carta, um encontro com Bethânia e a espera por um e-mail
Ilustração: Ramon Muniz
29/01/2023

Se 2023 se anuncia como um ano de renovação de velhos e quase perdidos ideais, é praticamente impossível evitar que, posta a cabeça fora do claustro, uma sensação de esperança quanto aos rumos de nossa vida cultural ressurja, nos domine e nos impulsione. Para reforçar essa impressão de alívio geral, acabo de receber a notícia de que a coleção Cartas Bahianas está de volta.

Quem não a conhece ainda, esclareço: trata-se de uma iniciativa do editor e poeta Claudius Portugal, que, em 2009, animado com a efervescência da escrita ficcional nos blogues, resolveu impulsionar a publicação de livros inéditos em Salvador, onde jovens autores lançavam seus trabalhos ao lado de nomes já consagrados e estabelecidos. Cada livro possuía 48 páginas, graficamente se assemelhava a um envelope de cartas e tinha como destinatários leitores de qualquer parte do mundo. A coleção atingiu a marca de 46 títulos e apresentou autores como Nilson Galvão, Marcus Borgón e Mariana Paiva, por exemplo, ombro a ombro com Ruy Espinheira Filho, Kátia Borges, Mayrant Gallo, Angela Vilma e Antonio Brasileiro.

Por ela, dei à luz a novela O retrato ou Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém em 2014. Tal qual Wilde fizera com Shakespeare no conto O retrato do Sr. W. H., tomei a liberdade, neste singelo livro, de fantasiar a respeito do objeto de amor de uma figura histórica, o rei Dom Carlos, infeliz protagonista do Regicídio em Portugal do início do século passado, quando os republicanos vociferavam contra toda e qualquer monarquia, fosse ela justa ou tirânica.

Embora meu texto possuísse a dimensão ideal para a envergadura do projeto, o tempo dedicado para sua confecção foi particularmente extenso. Entre a ideia original, a pesquisa e sua completa realização, levei cinco anos amadurecendo o projeto, escrevendo-o e reescrevendo-o. Foi também a primeira vez que me aventurei numa prosa de ficção com foco no passado. E me senti muito orgulhoso do resultado.

Tanto que, ao receber um convite para realizar um lançamento no Gabinete Português de Leitura no Recife, não pestanejei. No dia marcado para a viagem, mesmo não apreciando aviões, segui para o aeroporto confiante. Enquanto esperava a hora do embarque, encontrei Maria Bethânia sentada num banco com uma amiga. Com timidez, pedi licença e perguntei se poderia presenteá-la com um livro (eu tinha tomado o cuidado de incluir uma bonita dedicatória e meu endereço eletrônico no pé da folha de rosto, caso ela sentisse vontade de me dar retorno da leitura um dia). Ela não só aceitou, mas abriu um largo sorriso ao ver que se tratava de um exemplar do Cartas Bahianas, pois conhecia Claudius e admirava seu trabalho. “É de poesia?”, perguntou antes de folhear o livro.

Lembrei-me da minha juventude em Brasília, meus sonhos de me tornar um poeta importante na cidade. Eu & Sandro Ornellas percorrendo os bares da Asa Sul e Norte para vender nosso folhetim, impresso na gráfica do Correio Braziliense, dois românticos beatniks sem puto no bolso. Me lembrei da noite passada em claro após abrir a correspondência e descobrir que um poema meu fora selecionado num concurso para integrar uma coletânea, eu acreditando vir a ser um novo Drummond ou Quintana, imaginem!, sendo o concurso um caça-níqueis descarado e a coletânea o mais absoluto horror imaginado. E recordei quando rasguei todos os meus pobres cadernos e, consciente da minha incapacidade de fazer algo novo, vivo e singular em poesia, jurei não escrever mais verso algum (promessa quebrada em 2017 após o término de um relacionamento amoroso que me renderia dois poemas, sendo que um deles inesperadamente entraria na segunda edição do livro Poemas de amor, Nova Fronteira, 2021, organizada por Walmir Ayala e revista por André Seffrin, coisa que eu não desconfiava poder acontecer em 2014).

Eu respondi: “Não, não é”, e vi logo o entusiasmo de Bethânia arrefecer. Ela educadamente agradeceu o presente e fechou o livro no colo. Eu fui para o Recife e durante o voo pensei se não deveria rasgar todos os exemplares da minha modesta novela, pois talvez minha incapacidade de fazer algo novo, vivo e singular se estendesse para além da poesia. Pensei, mas não fiz. Eu lancei minha carta bahiana no Gabinete Português de leitura e, antes da sessão de autógrafos, conversei com uma turma de especialistas em literatura e interessados em cultura e história de Portugal.

Passados nove anos, ainda não recebi o correio eletrônico da Menina de Oyá.

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Aviso aos navegantes: esta coluna entrará em recesso até julho próximo, período em que mergulharei na escrita do meu segundo romance. Um abraço e até lá.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

Rascunho