(04/11/20)
Quando a editora Record me pediu uma sugestĂŁo de imagem para o designer que faria a capa de Rua de dentro, logo me lembrei do piso de cacos de cerâmica. Trata-se de um revestimento tĂpico dos quintais suburbanos do Rio de Janeiro, e o livro fala justamente daqueles que estĂŁo situados Ă sombra das grandes avenidas, do recorte viciado dos cartões-postais. Para alĂ©m disso, ao evocar o quintal, a imagem demarcava um espaço fronteiriço. De um lado, as ruas nas quais se dá a experiĂŞncia coletiva. Do outro, a casa, nossa cartografia Ăntima.
O contato com os leitores acabou por me revelar que a popularidade do piso de cacos extrapola – e muito – os limites do Rio. E instigou minha curiosidade sobre sua origem. A história é inusitada.
Nos anos 1940, um polo de produção de cerâmica se consolidou no Estado de SĂŁo Paulo. A Cerâmica SĂŁo Caetano, localizada na cidade homĂ´nima, era uma das principais indĂşstrias. Com seus trĂŞs mil empregados, construĂa placas de 20 cm x 20 cm tingidas de vermelho (as mais baratas), amarelo, branco e preto (mais custosas). Muitas dessas placas trincavam ou quebravam. Havia, entĂŁo, o descarte.
Ao perceber que parte da fabricação virava lixo, um dos funcionários da empresa pediu para ficar com algumas das peças defeituosas. Ele teve a ideia de colorir o piso de seu quintal que, como era comum nas casas das classes baixa e média baixa, tinha pavimentação em cimento queimado.
O mosaico rapidamente chamou a atenção dos vizinhos. Em pouco tempo, virou moda no bairro e atĂ© matĂ©ria em jornal. A ponto de a procura ser tanta que os donos da fábrica decidiram cobrar pelos cacos. O preço, no inĂcio, correspondia a 30% de uma peça Ăntegra. Mas logo o olho cresceu. A empresa passou a quebrar a cerâmica e o que era refugo se tornou mais caro do que o produto original.
Com a expansĂŁo da moradia em prĂ©dios e condomĂnios, o piso de cacos foi aos poucos sendo abandonado. Hoje, sua imagem costuma remeter a um passado familiar, quase idĂlico. A casa da avĂł, da tia, ou dos pais. Que retorna, como uma brisa repentina em dia quente de verĂŁo.
Foi no mosaico colorido de um quintal de Madureira que minha infância deu seus primeiros passos. Apesar da distância do tempo, a imagem daquele piso permanece intacta. A vaga para o carro, o balanço onde brincava com meus irmãos, o banco que nos servia de escada para observar o mundo.
Uma das narrativas mĂticas do Ifá, religiĂŁo de matriz africana, conta que Obatalá recebeu de OlodumarĂ© a missĂŁo de moldar todos os seres tendo o barro como elemento. ApĂłs delinear cada um, ele soprava o èmĂ (sopro da alma), possibilitando a existĂŞncia. Mas o barro Ă© finito, logo terminaria. Para resolver o problema, OlodumarĂ© estabeleceu um ciclo em nossa passagem pelo AiĂŞ, o plano fĂsico. Os seres, apĂłs determinado perĂodo, deveriam retornar Ă substância originária a fim de que novos indivĂduos pudessem ganhar molde e entĂŁo nascer.
Meu pai já se foi, minha mãe também. Eu e Lia, minha filha de cinco anos, somos barro desse barro desfeito.
Certo dia o empregado de uma fábrica em SĂŁo Caetano se cansou da monotonia cromática de sua casa e, sem dinheiro, transformou o sobejo em arte. Os cacos dessa histĂłria se espalharam por quintais paĂs afora, ajudaram a escrever outras histĂłrias. De mortes que viram vida, da vida que jamais sucumbe porque se faz lembrança.