🔓 Pés descalços não podem ler

Os caminhos que nos levam ao encontro dos livros, às inesquecíveis aventuras das primeiras histórias
Ilustração: Oliver Quinto
04/01/2023

Não sou sobredotada nem nada que se pareça, às vezes sinto-me até meio jumenta, mas consegui ler a primeira palavra sozinha aos cinco anos de idade. Nos anos 1980, em Portugal, os autocarros sinalizavam a vontade de sair de algum passageiro através de uma espécie de campainha que iluminava um pequeno néon a branco, situado no teto da viatura, onde podia ler-se a palavra PARAR. O néon de luz intermitente só se desligava depois de os passageiros saírem e o autocarro seguir viagem até à paragem seguinte. Esta foi a primeira palavra que eu consegui ler. Segundo a minha mãe, li-a em voz alta, sentada no banco do autocarro ao seu lado. A minha mãe conta que ficou estupefacta com a minha ação, que, no seu entender, era prodigiosa.

Não me recordo deste momento da leitura, é uma memória que está provavelmente filtrada, adulterada pelas inúmeras versões da minha mãe. Não me recordo sequer se, de facto, li a palavra no néon do autocarro ou se já tinha ouvido alguém falar sobre isso e me tivesse ficado na memória. O que eu sei e me recordo foi de ter chegado a casa nesse dia e de ter escrito PARAR, em maiúsculas, no caderno de desenho onde habitualmente desenhava casas com caminhos bifurcados, árvores com maçãs vermelhas, que ainda não sabia que se chamavam macieiras, e arco-íris desproporcionais, um fenómeno que considerava a coisa mais bela da Natureza. Também desenhava crocodilos, porque a minha mãe me tinha ensinado, e colocava-os muitas vezes à porta de uma dessas casinhas desenhadas ou debaixo da macieira. Portanto, algures neste cenário desenhado escrevi nesse dia em maiúsculas a palavra PARAR, que se tornou a minha primeira palavra lida e escrita.

A minha relação com a leitura e a escrita começou cedo, talvez tenha nascido de uma tentativa de fuga do ambiente no qual vivia. Quando escrevi e li a primeira palavra da minha vida morava em casa dos meus avós maternos, juntamente com os meus pais e dois tios adolescentes. Éramos sete pessoas a viver na mesma casa com apenas três quartos e uma sala. Não havia uma única pessoa que lesse ou que gostasse de ler, nunca tive esse exemplo através dos meus familiares. Aliás, na casa dos meus avós não havia livros, como, julgo não estar a errar, na maioria das casas portuguesas nessa época. A leitura era algo absolutamente supérfluo, dadas as necessidades básicas e os níveis de escolaridade da maior parte das famílias. Por exemplo, tanto o meu avô como a minha avó andaram na escola somente até aos sete anos de idade. O motivo que os levou a abandonar tão precocemente o ensino foi o mesmo, embora frequentassem escolas diferentes.

Como a minha avó me explicou, tanto ela como o meu avô, embora em pontos opostos do país – o meu avô era do Norte, mais propriamente da Beira Alta, da Covilhã, e a minha avó do Sul, da cidade de Faro –, deixaram ambos de poder ir à escola por não terem sapatos. Nos anos 1930, não ter sapatos era algo comum nas famílias mais pobres. As crianças tinham apenas um par de calcantes, normalmente usados até à exaustão com vários remendos na sola e pequenos buracos, e, se por acaso se estragassem definitivamente, deixava de ser possível frequentarem a escola. Um dos requisitos obrigatórios para frequentar o ensino era o uso de sapatos, o que excluía imediatamente a maioria das crianças pobres, uma vez que era frequente terem períodos em que não tinham um único par de sapatos. Como só frequentaram dois anos a sala de aula, os meus avós apenas sabiam assinar o seu próprio nome e ler pouco ou nada, sempre com um esforço demorado e hercúleo em juntar as sílabas, como pude assistir algumas vezes. Lembro-me de pensar em criança que se podia aprender a ler com os pés descalços e que aquela regra do tempo dos meus avós não fazia sentido.

Nunca percebi onde nasceu o meu gosto pela leitura e pelos livros mas talvez tenha sido na escola. Ao contrário dos meus avós, pude frequentar o ensino obrigatório e prosseguir até à faculdade. Não que tivesse muitos pares de sapatos, nunca deixámos de ser uma família humilde, mas graças ao esforço e suor do trabalho do meu pai, nunca me faltou nada ao nível das necessidades básicas. Nunca faltou comida na mesa, roupa barata, porém lavada e sem buracos, e alguns luxos como uma bicicleta onde vivi as melhores memórias da minha infância. Descobri os livros com As aventuras de Tom Saywer, de Mark Twain, um exemplar do Círculo de Leitores com 248 páginas, pousado no topo da móvel da sala, sabe-se lá vindo de onde, cuja aparição considero ainda hoje um acontecimento mágico. Foi o primeiro livro que li, tinha talvez uns oito, nove anos de idade. Senti que a leitura me proporcionava o mesmo prazer que a bicicleta: uma sensação de liberdade e evasão do mundo real familiar e conflituoso no qual vivia. Desde Mark Twain, e graças às bibliotecas públicas onde pude sempre requisitar gratuitamente livros que marcaram e definiram o percurso da minha vida, nunca mais pude deixar de ser uma leitora.

Cláudia Lucas Chéu

Nasceu em Lisboa (Portugal), em 1978. É escritora, poeta, dramaturga e argumentista. Tem mais de uma dezena de livros publicados em Portugal (poesia, dramaturgia, romance e contos). No Brasil, publicou os livros de poesia Confissão (Reformatório) e Ratazanas (Demônio Negro). Escreve para diversas publicações (jornal Público, Mensagem de Lisboa, revista Máxima, entre outras). Confissão foi semifinalista do Prêmio Oceanos em 2021.

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