🔓 PĂȘnis ou nĂŁo, eis a questĂŁo

Quando o autor tira o pĂȘnis na hora agĂĄ e isso cria uma sĂ©ria de dĂșvidas existenciais e mercadolĂłgicas
14/08/2022

Minha definição de “autocensura” Ă© que ela ocorre quando vocĂȘ corta alguma coisa do seu texto nĂŁo por motivos estĂ©ticos, mas por questĂ”es morais, mercadolĂłgicas, polĂ­ticas, etc.

O texto ficaria melhor com aquilo que foi censurado, mas vocĂȘ prefere deixar seu texto pior. É ilĂłgico, mas nĂŁo Ă© nada raro. E acontece mais do que gostarĂ­amos de admitir.

Eu mesmo, confesso, cometi uma autocensura por esses tempos e até agora não sei se me conformo com ela.

Aconteceu quando eu estava vendo os primeiros esboços da HQ Super-Zé, da qual sou roteirista. Havia uma cena em que Zé sonhava que defendia sua amada Xisleide do ataque de Clodoaldo, atual namorado de Xis e inimigo de infùncia de Zé.

Em vez de colocar o prĂłprio Clodoaldo no sonho, achei que seria melhor Super-ZĂ© lutar contra um imenso e metafĂłrico pĂȘnis, que o ilustrador AndrĂ© Bernardino fez com intimidadoras tatuagens tribais. Tratava-se de um inimigo terrĂ­vel, porque, a cada soco de Super-ZĂ©, o pĂȘnis ficava maior e mais ameaçador.

PorĂ©m, por conta dessa ilustração, talvez a HQ, pensada para pĂșberes, espinhentos e adultos, ficasse restrita apenas aos segundos e terceiros.

Fiquei numa dĂșvida terrĂ­vel. Eu preferia preservar o pĂȘnis. E nĂŁo veria problema nenhum se meu filho Matias lesse a revista com uns doze anos. Talvez dez. Mas muitos outros pais, professores, jurados e analistas veriam. O que fazer? Me curvar ao bom senso ou ao pĂȘnis gigante? Acabei escolhendo a primeira opção. E me convenci por dois motivos:

O primeiro Ă© literĂĄrio. Aquela era a Ășnica piada mais ardida do livro. Talvez destoasse do resto, todo mais sutil e suave. AliĂĄs, Ă© bom esclarecer que o livro nasceu como um romance (ainda inĂ©dito) e sĂł depois virou HQ. Nessa transformação tirei vĂĄrias coisas que seriam mais prĂłprias para adultos, como quando ZĂ© conta as peripĂ©cias sexuais que fazia com seu poder de superelasticidade.

Talvez, disse eu para mim mesmo, aquele pĂȘnis gigante fosse um resto do romance literĂĄrio, que pretendia atingir mais ao leitor adulto. E assim seria melhor, por coerĂȘncia e por unidade de tom, deixĂĄ-lo fora da HQ. AlĂ©m disso, uma linha mais juvenil e menos erotizada talvez combine mais com o universo dos quadrinhos de super-herĂłis. Afinal, vocĂȘ nĂŁo vĂȘ o Homem-Aranha sendo esmagado pelos seios gigantes de uma Silicone-Girl ou Super-Homem sendo vencido por uma sedutora alienĂ­gena que libera kriptonita pela vagina (ops, gostei desse argumento, vou anotar).

Mas o segundo motivo, dou a mĂŁo Ă  palmatĂłria, foi o mercado. Sem essa cena, imagino que o livro possa ser usado pela maioria das escolas e concorrer em editais pĂșblicos (mesmo que tenha um ou outro palavrĂŁo, fale de polĂ­tica e religiĂŁo, e revele que as pessoas fazem sexo). E escolas e governos sĂŁo duas fontes de renda muito importantes para editoras pequenas.

Fico me perguntando: se eu nĂŁo fosse tambĂ©m o dono da Padaria de Livros, serĂĄ que bateria o pĂ© e exigiria a sobrevivĂȘncia de meu pĂȘnis gigante? E me respondo: nĂŁo sei.

De qualquer forma, acabei tirando o pĂȘnis na hora agĂĄ e troquei-o por um Hulkoaldo, uma mistura de Hulk com Clodoaldo.

Meu consolo Ă© saber que, quando sair o romance que deu origem Ă  HQ, a cena estarĂĄ lĂĄ. NĂŁo desenhada, mas em letras. SĂł nĂŁo sei ao certo se o consolo substitui o pĂȘnis.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prĂȘmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. TambĂ©m Ă© autor de livros de nĂŁo ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionĂĄrio amoroso.

Rascunho