🔓 Pedra, papel e… pixel

Os motivos que ainda levam os leitores aos livros de papel e a inútil “batalha” com o digital
13/07/2021

* Série LeituraBR

Com este texto, minha ideia é finalizar a série de comentários leves & livres sobre os resultados da mais recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que conta com gente muito mais bamba do que eu para a missão de debater e analisar. Mas que gosto do tema, ah, isso gosto. E até pode ser que ele sempre volte, porque está entranhado em tudo quanto faço na vida, inclusive e principalmente na faceta profissional.

Espiando ali pelas frestas dos relatórios, deparei com um dos subtemas mais inflamáveis da pesquisa, o que não poderia faltar e que causa burburinho por onde chega. Segundo os números divulgados, 92% das felizardas pessoas que leem neste país preferem fazê-lo no papel. Isso em tempos recentíssimos, não é nada que ultrapasse meia década, isto é, já estavam na cena todos os apetrechos e devices que conhecemos hoje como suportes de leitura. Ou portadores, conforme se queira.

Não é pouca coisa considerar que a cada cem indivíduos… 92, se tiverem ali por perto um tijolinho de papel e tinta, darão preferência a ele. E isso por quê? Por falta de mais e-books? Certamente não. Por falta de equipamento? Talvez. Por falta de paciência? Bem provavelmente. Porque as experiências são mesmo muito diferentes. E eu cá fico pensando em como as empresas de tecnologia e parte da imprensa caíram nessa de tentar nos convencer, a nós leitores e leitoras contumazes, de que uma mentalidade competitiva e exclusivista daria conta do recado. Ainda não. Tomara que jamais.

Coisa interessante e curiosa também é observar que as pessoas que têm entre 18 e 24 anos estão mais disponíveis para o e-book, segundo os resultados. Até aí nada que nos surpreenda. 73% dessa turma lê em smartphones, o que também parece evidente até a olho nu, sem requintes metodológicos nem nada. Mas vejam: quando o papo é comprar livros, as livrarias disparam na frente, e são onde as pessoas preferem mesmo consumir os títulos que desejam e os que ainda nem conhecem.

Bom, talvez tenha havido alguma mudança importante por conta da pandemia. Uma pesquisa situada talvez ajudasse a saber com mais nitidez. Por enquanto, vamos de suspeitas mesmo.

Livrarias e travesseirões
Livraria é bom demais. De fato, fico pensando no que sinto quando me movo de um terreno ao outro, sem essa de este ou aquele. Tenho estantes cheias de obras de papel e um Kindle, até estufado de tantas outras obras. Geralmente elas não são as mesmas das estantes. Algumas vão passar pelo equipamento apenas por um tempo; logo serão apagadas e devolvidas ao pó verde limão da digitalidade límbica. Outras ficarão ali, mas eu olho para elas no mostrador e me dá muita vontade de que elas estivessem em pé na estante física. Por que não estão? Porque seus preços são proibitivos em versão de papel. Só por isso. Ou porque elas são importadas (o que se relaciona fortemente com o motivo anterior) e chegam mais fácil a mim digitalmente, sem barreiras alfandegárias, monetárias e logísticas de maior monta. Mas a sensação mesmo é de que eu não as tenho, elas não me pertencem e só aparecem quando toco determinados botões (que são só emulações) na telinha do Kindle.

A experiência de lê-las também é outra. Geralmente me deito na cama, recostada em travesseirões, a fim de ler romances ou textos científicos. Toco a tela com uma canetinha com ponta de borracha feita especialmente para esse fim. Limpo a tela com tecido flanelado e cuido para que não derrubem meu equipamento do criado-mudo, trincando-lhe o vidro (caríssimo ou sem conserto que valha a pena). Quanto aos livros de papel, tiro e retiro pelas lombadas, deixo no quarto, no banheiro e na sala, marcados com tiras de papel mais espesso, para ler sentada ou deitada, também em todo canto. Portabilidade, minha gente, é coisa de que o livro foi precursor, e faz tempo. É uma de suas características mais incríveis, embora seja necessário levar embaixo do braço vários deles, se a ideia for variar. No Kindle e seus assemelhados, é claro que a relação é diferente: mil títulos ali cabem, fazendo o volume de menos que um. Mas isso só é possível justamente porque esses livros digitais são projeções, não exatamente objetos. O objeto é o device.

No caso dos e-readers, a relação é bastante dedicada, isto é, ele serve para pouco mais que projetar livros que alguém vai ler. Mas se as pessoas leem mais em smartphones, elas certamente estão à mercê de muitas outras coisas, como as notificações infinitas de redes sociais e outras demandas. É ainda outra experiência.

Como disse Leonardo Villa-Forte, numa tuitada que viralizou faz pouco: um livro ainda é um dos únicos lugares de leitura que não são invadidos pela propaganda. As palavras dele não foram exatamente essas, mas vale o sentido. De fato, nunca me chegou um pop-up do iFood ou de loja de sapato retrô enquanto eu lia meu calhamaço de papel.

Tudo quero, tudo posso
O barato é o seguinte: enquanto a mentalidade for essa da exclusão, exclusividade, competitividade, concorrência… vai parecer que estamos tratando livros e e-books como inimigos, como se fossem incapazes de conviver. É um modo de pensar bem interessante para quatro ou cinco empresas de tecnologia que se dão bem com consumidores antidiversidade. Para mim isso não cola. Não entro em falsos debates e nem em polêmicas fraudulentas sobre algo que as práticas sociais já dão sinais muito mais interessantes e inteligentes de como funciona. Prefiro vislumbrar as genealogias e as possibilidades conciliáveis desses objetos de ler. Numa pesquisa que fizemos com adolescentes do ensino médio, estava lá a disponibilidade deles e delas para misturar, simplesmente interpolar, alternar, aproveitando o que for bom ou conveniente de cada tecnologia. A minha disponibilidade também é essa. Eu sei o que quero de um jeito e o que quero de outro; o que me custa menos ou mais; o que escolho por isto ou aquilo. Sabichões que percam seu tempo discutindo oposições fake.

Cá entre nós: as gentes do livro gostam de falar em bibliodiversidade. Simpatizamos com essa ideia desde que ela foi posta, e isso tem mais de duas décadas. A ideia, incansavelmente debatida até hoje, gira em torno do fato de que é preciso evitar que poucas empresas produzam tipos limitados de obras; ou estimular que as editoras, em especial as pequenas, continuem produzindo catálogos diversos, fora do que poucos grandes grupos produzem ou definem que seja “o bom”. Enfim, uma noção bastante voltada ao conteúdo, aos temas, à diversidade das obras em seus gêneros editoriais, suas autorias etc.

De cá ainda acho mais: que é preciso pensar a bibliodiversidade, no século 21, considerando também as tecnologias do livro. Se os livros vão se expandindo em termos de forma, grão, papel ou pixel, por que não pensar também nisso, incluindo, em vez de excluir? Por que não pensar que os livros de naturezas tecnológicas diversas alcançam de modo diferente as pessoas, leitores e leitoras diversos, em suas possibilidades de escolha? Por que não admitir que ter todos os tipos de livros seja uma boa para a leitura? E parar de tratar o assunto como se fosse um campeonato ridículo desses em que só um time pode ganhar? Ou um filme ruim em que todo mundo morre no final, restando apenas um personagem todo estropiado.

Vai ser fino quando todo livro for vários, podendo ser acessado aqui, lá e acolá; toda a gente puder escolher; e trilhar todas as leituras for muito mais legal do que não ler absolutamente nada.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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