🔓 Paredes, projeções

Que maravilha é estar disposto a uma certa ficção e fingir não ter o controle sobre ela
Ilustração: Thiago Lucas
10/01/2023

Quando meu sobrinho de quatro anos apagou a luz da sala, ficamos todos no escuro. Tacitamente, acordamos não acender nenhuma luz e não reagir adultamente à atitude dele. Ainda não sabíamos o que o menino faria no escuro, ele e seu bonezinho à sombra, já era noite quase fechada num prédio em Belo Horizonte, verão chuvoso, e nós seis ali, todos no escuro, sendo guiados por um piá que mal sabe falar. Ninguém se rebelou, ninguém xingou, ninguém esbravejou, ninguém acendeu o three way como se não fosse nada a ideia do garoto. Apenas ficamos no escuro por alguns minutos, à espera da próxima fase.

De fato, ele logo fez um movimento que acendeu a lanterna do celular velho que lhe cabe para brincar. Pôs o telefone encostado em uma garrafa de refrigerante sobre a mesa, quase no meio de nós, e deixou que a luz forte iluminasse apenas uma parede de fundo. Todos passamos a olhar para aquela tela improvisada, uma parede bege, um pouco acidentada pela textura de massa, onde ainda não acontecia nada. Fomos entregues à penumbra. Era uma certa engenharia, coisa de gente pensante, mas nós ainda tínhamos dúvida sobre o futuro próximo.

Mais alguns segundos e meu sobrinho então mexeu com as mãozinhas magras e miúdas e passou a tentar projetar na parede uma sombra de animal. Um cachorro, um jacaré, alguma coisa que tinha boca, mas que não conseguia ter orelhas ou nariz, focinho ou pés. Uma sombra apenas, mas que funcionaria como um bicho, uma silhueta meio imaginária que dependia muito da nossa colaboração, mais uma vez. Junto com o gesto e a sombra, ele passou a reproduzir um som, e era uma espécie de latido. Então, ainda tacitamente, todos entendemos que se tratava de um cão que latia, mesmo que não fosse bravo, e nem fosse cão, e nem fosse animal. E o pai do garoto entendeu que era um convite para brincar. E também fez, com sua mão grande, um animal maior. A forma era a de um crocodilo, talvez nem isso, mas era também, e ele vinha enorme, meio de cima, projetando uma sombra que atacava a sombrinha das mãozinhas do pequeno, mas que não chegava a machucar ninguém. Era uma ameaça, um bicho imenso e robusto, que chegava do alto da parede e nhac. O som do nhac era aterrorizante. E meu sobrinho misturava gargalhadas arfantes a berros e a gritos finos, estridentes. Chegava a tremer, a mexer os bracinhos em sinal de terror, mas a boca ria muito, os olhos brilhavam no escuro, o bicho enorme continuava sua ameaça imaginária e o misto de medo e alegria nos contagiava a todos.

Entrei na roda. Fiz um pássaro que chegava voando do alto e apenas bordejava pela parede, sem som e sem ameaça alguma. Era para aumentar a fauna, embelezar a paisagem. Ninguém mais sabia fazer muitas formas. O gurizinho mantinha seu cachorro sem orelhas, enquanto o pai dele volta e meia reconduzia ao centro da parede um bichão que quase tomava todo o espaço de projeção. Quando o pai se cansava e parava, o pequeno dizia: mais uma vez! E tudo recomeçava.

Não sei quanto tempo isso durou. Provavelmente pouco. Ninguém acendeu a luz enquanto a brincadeira rolou. Era bem escuro já. Os gritos do piá eram altos. O condomínio inteiro deve ter escutado. E nós só queríamos ver a enormidade da alegria gratuita dele, brincando com luz e sombras numa parede bege. Topamos a parada até ele mesmo mudar de ideia, meter os dedinhos no interruptor e a luz voltar, apagando as sombras, os bichos, as contendas, as batalhas, os berros, as caçadas e os nossos sorrisos desbragados.

Não me impressionou tanto a ideia que ele teve; nem a relativa habilidade do pai dele de fazer monstros zoomórficos; a potência do grito infantil; nem me impressionaram as caras de bobos apaixonados da tia, dos avós, da mãe. O que mais me impressionava, naquela brincadeira de minutos, era a capacidade que o gurizinho tinha de acreditar emocionadamente nas sombras que ele mesmo criava, nas imagens que ele sabia que não eram “reais”, nas ameaças de um bicho amorfo que ele sabia serem as mãos do próprio pai. Me impressionava a reação corporal e espiritual dele às histórias que ele via, que ele provocava, que ele inventava para se divertir por alguns segundos, mas que ele mesmo sabia como cessar: tocando o interruptor. Que delírio delícia. Que maravilha é estar disposto a uma certa ficção e fingir não ter o controle sobre ela. Que alegria recompor esses sentimentos ao toque de um dedo, ter a capacidade de atribuir sentido a qualquer coisa que se pareça um personagem, a qualquer trilha que se pareça uma história, bancar uns momentos de alegria, divertir-se e cessar. Acho que essa criança mora aqui em mim, nos livros que procuro, as paredes das minhas projeções, meus jacarés, minhas aves que voam baixo. Eu voando alto. Ou por onde eu quiser.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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