🔓 Paixão

Os equívocos, silêncios e loucuras que o excesso ou falta de amor podem ocasionar a casais em qualquer lugar do mundo
Ilustração: Dê Almeida
16/11/2021

Em Cascais há um restaurante chamado Paixão. Ao lado da porta de entrada estão um portão fechado a cadeado e a palavra paixão em grafite amador. Parece guardar a trancas a febre que alguns encontros geram. Onde estarão esses monstros, a paixão? Enquanto vemos o cadeado, estamos livres ou presos daqui do nosso ponto de vista? Nunca dá pra saber. De qualquer forma que seja, as correntes de ferro já dizem tudo: uma besta desenfreada e com fome te espreita. Mantenha distância.

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Tanta gente morrendo. Os dois seguem firmes e, mesmo assim, não se possibilitam.

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Era hora do almoço e eu passava em frente ao restaurante Paixão. Olho para cima e vejo, preso por trás das grades de uma pequena janela, um homem muito gordo segurando um copo de tinto. Talvez seja isso: com aparência generosa, a paixão te embriaga a ponto de excessos.

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Como as pessoas conseguem manter relacionamentos à distância, em geografias diversas? Quem sabe, poderiam aprender com os casamentos onde vivem pessoas apartadas umas das outras ocupando a mesma mesa. Não vão ao cinema, não vão ver os amigos, não dão festas, não vão mais andar pela cidade, não fazem nem sexo e nem amor, mas fazem muito silêncio.

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não esquecer.

Significante: mesa

Significado: lugar onde se faz sexo

Significante: cama

Significado: lugar onde se sofre de insônia

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Na Casa das Histórias Paula Rego há figuras de mães sempre ao fundo da tela, atrás das filhas, mães enormes, agigantadas, monstruosas. Parecem até oferecer proteção.

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Num restaurante que não é o Paixão, um casal que pode comprar o vinho mais caro, olha o cardápio por mais tempo que o necessário. Quando o garçom tira o menu, arranca deles a desculpa que tinham para não se olharem. Ele entrelaça as próprias mãos, cotovelos à mesa. Ela rodopia com o indicador a borda da taça de água. Há tipos de silêncio: os breves, os longos. O que eles fazem é o silêncio dos casais que não se amam, mas pagaram pelas férias.

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Vou, amanhã, voltar a passar perto do restaurante Paixão. Fiquei pensando se não errei de nome. No cardápio mariscos, peixes de todo jeito. Talvez seja Peixão. A paixão sempre a nos cegar.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

Rascunho