Estive poucas vezes no Bar Filial, que costumava lotar a esquina entre as ruas Fidalga e Aspicuelta, na Vila Madalena. A mais memorável — ou desastrada, dependendo do ponto de vista —, uma noite pós-show dos irmãos Ramil, na qual resolvi fazer graça com o cachecol que Kleiton ostentava ao entrar no estabelecimento. “Tá com frio, tchê?”. De resposta, um boa noite polido.
Com as idas a SĂŁo Paulo rareadas pela pandemia, nĂŁo soube que o Filial havia fechado as portas. Tampouco sobre sua reabertura, em janeiro deste ano, sob nova administração. Quem me deu a notĂcia foi o jornalista Marcos Nogueira, que mantĂ©m o blog Cozinha Bruta no site da Folha de S. Paulo. Frequentador do Filial por mais de dez anos, Nogueira publicou uma bela e melancĂłlica resenha sobre o espaço repaginado e agora gerido pelo grupo Fábrica de Bares. “O Filial renasceu: nĂŁo estaria melhor morto?”, indaga ele no texto.
A pergunta traz o eco das noites passadas ali, entre conversas, calderetas e, não raro, cadeiras de ponta-cabeça. Com a intimidade de quem batia ponto quase diariamente no lugar, Nogueira lembra dos bolinhos de arroz bem fritos, do caldo de feijão com torresmo, da coxinha gostosa, “sempre fria no meio”. E não se furta a comparar: “A comida não está pior do que antigamente, talvez esteja melhor, mas pouco importa”. O Filial, sugere ele, perdeu aquilo que mais vale num bar: sua alma.
Sim, porque parafraseando o cronista JoĂŁo do Rio, certos bares tĂŞm alma. Outros, por melhores que sejam a cozinha, o serviço, as instalações, parecem corpos sem espĂrito. Podem agradar aquele cliente pretensamente antenado cujo gosto se define pelas listas da moda, pelo drink do momento, mas o encanto Ă© fugaz. Como a bolha de sabĂŁo que infla, brilha por alguns segundos e logo se dissipa. Evoco um segundo cronista, o mineiro Paulo Mendes Campos: esses bares podem merecer nosso entusiasmo, mas jamais merecerĂŁo o nosso amor.
A alma, aliás, é o segredo de um dos maiores paradoxos da boemia: o ótimo bar ruim. Não, caro leitor, não se trata de erro da revisão. Os adjetivos colidentes aqui se justificam.
Refiro-me Ă quele boteco que nĂŁo se destaca por suas dependĂŞncias, que serve um chope nĂŁo mais que mediano, cujos petiscos ficam no limite do insosso, mas nos ganha pelo universo que encerra em si mesmo. Pelo prazer intangĂvel de simplesmente se estar ali.
O Rio de Janeiro Ă© prĂłdigo nesse tipo de bar. SĂŁo Paulo, como mostra Marcos Nogueira, tambĂ©m tem os seus. E assim cada diferente cidade ao longo do paĂs. O Ăłtimo bar ruim Ă© uma instituição genuinamente brasileira.
Mas, seja um Ăłtimo bar no sentido estrito ou um Ăłtimo bar ruim, há algo que nĂŁo muda. O fato de que a perda da alma significa, inexoravelmente, o seu fim. Ainda que, apĂłs encerrar as atividades, seja reinaugurado com o nome de sempre, os mesmĂssimos mĂłveis, no endereço original.
Por isso fecho com meu colega paulista. Sem alma, melhor que acabem de vez. E fiquemos nós, seus órfãos, a recordá-los, a contar as suas, as nossas histórias. Uma forma mais digna de não deixá-los morrer.