Estimado (a) leitor (a), o escritor francês Albert Camus, em sua obra-prima, A peste, aliás de leitura obrigatória nestes trágicos tempos, afirma que “nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes desgraças são monótonas” — e que, por isso, “um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação”.
No momento em que escrevo, os óbitos por covid-19 no Brasil ultrapassam as 440 mil pessoas. Visto assim, friamente, trata-se apenas de um número que não nos comove — ou nos comove apenas quando morre alguma celebridade na qual, de alguma maneira, projetamos ilusões que jamais se materializarão. Mas essas 440 mil pessoas todas têm nome e história: viveram um dia, amaram, sonharam e desejaram ser felizes. E tiveram ceifadas suas trajetórias por essa terrível doença, sim, mas também pelo total desprezo pela vida demonstrada pelas nossas autoridades.
Sou nascido em uma pequena cidade, Cataguases, interior de Minas Gerais, cuja população gira em torno de 75 mil habitantes. Saí de lá cedo, aos 17 anos incompletos, e carrego comigo para onde vou memórias de gentes e coisas da minha infância e adolescência, pois, como o poeta Antônio Carlos de Brito (Cacaso), também penso que “minha pátria é minha infância:/ Por isso vivo no exílio”. As pessoas que lá deixei, e das quais ainda guardo lembranças, ou são da minha idade ou mais velhas que eu, portanto, pertencem àquela faixa considerada a mais perigosa para se contaminar com o vírus da covid-19.
Todos os dias converso com minha irmã, Lúcia, único parente que me restou em Cataguases. E, infelizmente, nesses contatos, não passa uma vez sequer sem que se noticie a morte de mais um daqueles velhos conhecidos do nosso passado comum. E, como escreveu o poeta Ferreira Gullar, em Notícia da morte de Alberto da Silva, “e porque ninguém noticiou o fato/ fazemos aqui esse breve relato”, compartilho com você, leitor (a), os nomes daquelas pessoas que um dia fizeram parte da minha história:
Lucilene cabeleireira; João Pussente; Silvana; jornalista Nelson Filho; professor Paulo Roberto Moitão e a mãe dele; dona Dulce, seu Adão e o filho deles, Serginho; Bíner; dona Maria; seu Henrique motorista; Edgar; Marcinho; Eduardo; dona Cenira; Manteiga; Lúcio do cachorro-quente; pastor Toledo; dona Julia; Elaine; Totônio relojoeiro e a mulher dele; Manoel Tiago; Hélio Machado da Mercantil; Juraci Carvalho da Cobal; Osvaldo Henrique; Lea de Oliveira.
Luz na escuridão
José Vecchi de Carvalho, contista:
“Estou totalmente envolvido com o meu livro Cada gota de silêncio, lançado recentemente. Em breve, pretendo abrir picadas na intrincada floresta das narrativas longas, tentar reduzir o fluxo de tensão que vai do autor para o conto e do conto para o autor, sem tréguas. Iniciei alguns estudos e pesquisas para narrar as desventuras de um personagem arredio, cético e, ao mesmo tempo, pusilânime. Mas, por ora, vou tentando gritar o Cada gota de silêncio, cujos contos são permeados de formas diferentes de silêncio: a introspecção, a indiferença, o medo, a censura, a covardia. Um jovem se mata, um grevista desaparece, uma chacina elimina moradores de rua, uma criança sofre abusos, enfim, o tecido social se esfarrapa diante de nossa impotente perplexidade. O livro físico está disponível no site da editora e o e-book, na Amazon.
Parachoque de caminhão
“Sem se dar conta, ingressou naquele estado que é a primeira fase da morte, quando o homem passa a observar com mais interesse as sombras que os objetos projetam do que os próprios objetos.”
Ivo Andric (1892-1975)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Manuel Bandeira
(Recife, PE, 1886 – Rio de Janeiro, RJ, 1968)
A morte absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente}
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?…”
Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome.
(Lira dos cinquent’anos, 1940)