🔓 Os países

O retorno à Inglaterra, após breve estada no Brasil, reforça como o tempo expõe o nosso ridículo, mas nos oferece perdão
Ilustração: FP Rodrigues
19/04/2022

Estou sentada na cozinha de casa. Casa, agora, volta a ser a Inglaterra. Desde ontem que a casa voltou a ser a Inglaterra. Um voo daqueles que nos viram do avesso: doze horas que mais são vinte e quatro, se for contar o porta à porta. Ontem, quando cheguei de viagem, fui dormir às sete da noite. Teria ido às seis, mas na tentativa de organizar o fuso, resisti mais uma hora. Chegar nesta casa aqui é ambivalente. A primavera na Inglaterra é mesmo muito bonita. Talvez o contraste com o inverno tão cinza e escuro seja nítido demais com a predominância de um céu azul claro e o cheiro da magnólia nos jardins das casas.

Mais que o contraste de estações, tão marcado neste país, o contraste dessas pessoas que me habitam. Claro que isso soa pretensioso, mas eu não consigo entender outra forma de fazer sentido dos cortes e dos laços que acontecem e se aprofundam quando vou ao Brasil e, necessariamente, volto para a Inglaterra. O Brasil é, por conceito, a terra que eu rejeitei. Não sou refugiada, exilada. Escolhi deixar um país louco, caótico, violento, meu, de geografia belíssima e que guarda dentro dele amigos, família, afetos.

Venho descobrindo Portugal. (Escrevo isso e penso em Cabral, “descobrindo” o Brasil. Pois agora é minha vez.) Mas isso faz pouco tempo. Lá há ainda o mistério: será que é um lugar que sempre que eu for, e tenho ido com frequência, vai me proporcionar a generosidade dos encontros e trocas pessoais? Enquanto descubro, há a Inglaterra. A Inglaterra estacionada. Estacionada no sentido de eu não parecer conseguir retirar da sua superfície nada mais aprofundado do que consegui há, por exemplo, dez anos. Tenho poucos bons amigos ingleses. Muitos e muitos conhecidos. (As dinner parties são sempre uma diversão.) Mas há, me parece, um código entre os ingleses que ativa um botão vermelho para destacar que não se cruza uma fronteira tão facilmente. Tudo muito estranho, já que meus filhos são ingleses, ainda que convivam predominantemente com a mãe brasileira.

Falo muito com a minha filha, uma jovem mulher de uma inteligência, sensibilidade e praticidade fora do comum, sobre essa questão do código. Ela me garante que eu exagero, penso demais, especulo demais. Que a coisa toda é muito mais natural e menos elaborada do que eu suponho. Claro, ela está certa porque, geralmente, eu imagino coisas mesmo. Mas há uma inadequação minha. E isso, veja, não é ruim ou negativo. Eu tenho esse aspecto como natural. Cresci fora do lugar, cresci diferente das amigas. Eu era levemente melancólica. Às vezes, fingia ser outra pessoa e só respondia se me chamassem por outro nome. Às vezes, eu não falava, chorava na cama sem motivo aparente, tinha fé de que um dia sairia do lugar e a vista da janela seria a de outras árvores que não a bananeira e a sólida mangueira do quintal. Não fui uma criança fácil. Dava trabalho, emocionalmente falando. Estar fora do lugar ou não identificar um lugar como completamente meu ou ainda, sentir-me em casa em qualquer lugar são comportamentos naturais pra mim.

Mas há o Brasil. Esse lugar que, hoje e com a distância oferecida pelo tempo, me seduz de forma confusa. Semana passada, meu pai riu de mim porque eu tirava fotos de uma bananeira e da estrada de terra alaranjada que tanto me causou dor na vista quando criança, pela poeira que nunca baixava, ou quando chovia era esse local de mistério onde eu atolava os pés e perdia meus pares de havaianas para sempre. Eu também achei engraçado e completamente incoerente registrar aquelas imagens. Mas da mesma forma que o tempo expõe o nosso ridículo, ele nos oferece perdão.

A novidade que eu encontro no Brasil é a generosidade de sempre. Nada de novo na surpresa. As pessoas das redes que se materializaram na minha frente eram, já, velhos conhecidos. Abraçada como se tivesse minha falta sentida por quem nunca havia me visto em carne e osso, eu ouvia minha língua como se eu voltasse para dentro. Também os amigos de mais de quarenta anos. Lá estavam com aquele brilho nos olhos me encontrando onde nem eu sei se estou mais. Daqui da Inglaterra eu me pergunto: como pode tanta abertura assim? Talvez eu saiba a resposta quando escuto minha gargalhada mais alta ou meu excesso de contato físico quando estou em companhia inglesa. É que há coisas que não nos largam. Talvez seja esse o nosso único país possível; nós mesmos.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

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