Estou sentada na cozinha de casa. Casa, agora, volta a ser a Inglaterra. Desde ontem que a casa voltou a ser a Inglaterra. Um voo daqueles que nos viram do avesso: doze horas que mais sĂŁo vinte e quatro, se for contar o porta Ă porta. Ontem, quando cheguei de viagem, fui dormir Ă s sete da noite. Teria ido Ă s seis, mas na tentativa de organizar o fuso, resisti mais uma hora. Chegar nesta casa aqui Ă© ambivalente. A primavera na Inglaterra Ă© mesmo muito bonita. Talvez o contraste com o inverno tĂŁo cinza e escuro seja nĂtido demais com a predominância de um cĂ©u azul claro e o cheiro da magnĂłlia nos jardins das casas.
Mais que o contraste de estações, tĂŁo marcado neste paĂs, o contraste dessas pessoas que me habitam. Claro que isso soa pretensioso, mas eu nĂŁo consigo entender outra forma de fazer sentido dos cortes e dos laços que acontecem e se aprofundam quando vou ao Brasil e, necessariamente, volto para a Inglaterra. O Brasil Ă©, por conceito, a terra que eu rejeitei. NĂŁo sou refugiada, exilada. Escolhi deixar um paĂs louco, caĂłtico, violento, meu, de geografia belĂssima e que guarda dentro dele amigos, famĂlia, afetos.
Venho descobrindo Portugal. (Escrevo isso e penso em Cabral, “descobrindo” o Brasil. Pois agora Ă© minha vez.) Mas isso faz pouco tempo. Lá há ainda o mistĂ©rio: será que Ă© um lugar que sempre que eu for, e tenho ido com frequĂŞncia, vai me proporcionar a generosidade dos encontros e trocas pessoais? Enquanto descubro, há a Inglaterra. A Inglaterra estacionada. Estacionada no sentido de eu nĂŁo parecer conseguir retirar da sua superfĂcie nada mais aprofundado do que consegui há, por exemplo, dez anos. Tenho poucos bons amigos ingleses. Muitos e muitos conhecidos. (As dinner parties sĂŁo sempre uma diversĂŁo.) Mas há, me parece, um cĂłdigo entre os ingleses que ativa um botĂŁo vermelho para destacar que nĂŁo se cruza uma fronteira tĂŁo facilmente. Tudo muito estranho, já que meus filhos sĂŁo ingleses, ainda que convivam predominantemente com a mĂŁe brasileira.
Falo muito com a minha filha, uma jovem mulher de uma inteligência, sensibilidade e praticidade fora do comum, sobre essa questão do código. Ela me garante que eu exagero, penso demais, especulo demais. Que a coisa toda é muito mais natural e menos elaborada do que eu suponho. Claro, ela está certa porque, geralmente, eu imagino coisas mesmo. Mas há uma inadequação minha. E isso, veja, não é ruim ou negativo. Eu tenho esse aspecto como natural. Cresci fora do lugar, cresci diferente das amigas. Eu era levemente melancólica. Às vezes, fingia ser outra pessoa e só respondia se me chamassem por outro nome. Às vezes, eu não falava, chorava na cama sem motivo aparente, tinha fé de que um dia sairia do lugar e a vista da janela seria a de outras árvores que não a bananeira e a sólida mangueira do quintal. Não fui uma criança fácil. Dava trabalho, emocionalmente falando. Estar fora do lugar ou não identificar um lugar como completamente meu ou ainda, sentir-me em casa em qualquer lugar são comportamentos naturais pra mim.
Mas há o Brasil. Esse lugar que, hoje e com a distância oferecida pelo tempo, me seduz de forma confusa. Semana passada, meu pai riu de mim porque eu tirava fotos de uma bananeira e da estrada de terra alaranjada que tanto me causou dor na vista quando criança, pela poeira que nunca baixava, ou quando chovia era esse local de mistĂ©rio onde eu atolava os pĂ©s e perdia meus pares de havaianas para sempre. Eu tambĂ©m achei engraçado e completamente incoerente registrar aquelas imagens. Mas da mesma forma que o tempo expõe o nosso ridĂculo, ele nos oferece perdĂŁo.
A novidade que eu encontro no Brasil Ă© a generosidade de sempre. Nada de novo na surpresa. As pessoas das redes que se materializaram na minha frente eram, já, velhos conhecidos. Abraçada como se tivesse minha falta sentida por quem nunca havia me visto em carne e osso, eu ouvia minha lĂngua como se eu voltasse para dentro. TambĂ©m os amigos de mais de quarenta anos. Lá estavam com aquele brilho nos olhos me encontrando onde nem eu sei se estou mais. Daqui da Inglaterra eu me pergunto: como pode tanta abertura assim? Talvez eu saiba a resposta quando escuto minha gargalhada mais alta ou meu excesso de contato fĂsico quando estou em companhia inglesa. É que há coisas que nĂŁo nos largam. Talvez seja esse o nosso Ăşnico paĂs possĂvel; nĂłs mesmos.