A revista Sports Illustrated Swimsuit 2022 publicou uma capa com a modelo plus size Yumi Nu e o guru de autoajuda Jordan Peterson teve um faniquito a respeito. Como esperado, correu a internet.
Alguns anos atrás, bem em uma das Ă©pocas mais difĂceis da minha vida e enquanto eu lutava contra obesidade e depressĂŁo (relacionadas), uma das pessoas mais prĂłximas a mim afirmou que gordofobia nĂŁo existe. Como esperado, eu tive um faniquito a respeito.
Somos animais linguĂsticos. SĂł atribuĂmos existĂŞncia Ă quilo que nomeamos. Ao negar a existĂŞncia de um preconceito que me atinge, a pessoa negou a existĂŞncia da minha dor, da minha biografia, de quem eu fui e sou.
A invisibilidade é algo que machuca, que mata. Muito sabiamente, o movimento LGBTQIA+ usou o slogan We’re here. We’re queer. Get used to it.
Existem muitas invisibilidades. As mulheres conhecem a maior parte intimamente, das sutis Ă s violentas, criminosas e fatais.
Sou privilegiada e posso pensar em sutilezas. Sutilezas violentas, mas sutilezas ainda assim.
Dentro desse cenário, sutil, sempre me surpreende o quanto fui burra e lenta. O tempo que demorei para me libertar de relacionamentos tóxicos, meu deus, ô lerda.
Vivi o esquecimento, a solidĂŁo, a angĂşstia, a hipocrisia, a violĂŞncia, o silenciamento. Eu e todo mundo. NĂŁo somos Ăşnicos. NĂŁo somos os melhores. Nunca o seremos.
NĂŁo sou nada.
Nunca serei nada.
NĂŁo posso querer ser nada.
Ă€ parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Tenho um moleton, da Ă©poca da obesidade, estampado com “tenho em mim todos os sonhos do mundo”. É a Ăşnica roupa desse perĂodo — desse corpo — de que nĂŁo me desfiz.
Não somos nada e não há tempo. A inércia aprendida nos consome e precisamos lutar ativamente contra ela. Fiz de mim o que não soube e o que podia fazer de mim também. Essa é minha maior e talvez única vitória.
Isso significa não aceitar a posição de invisibilidade. Significa não aceitar que decidam por nós, por exemplo. É sutil. É no detalhe mesmo.
Isso significa exigir dos relacionamentos afetivos a total e absoluta sinceridade. Sinceridade de afeto, presença, entrega, acolhimento e escuta.
Isso significa, também, se relacionar com os afetos e com o mundo com igual sinceridade. É uma questão de saber quem se é e de ser no mundo. O tal do dasein. Ou, se preferir, o tao do dasein.
Correndo o risco de parecer mais zen do que eu de fato sou, espero nunca mais me afastar do Tao, do Eros e da alegria. E nĂŁo aceitar menos do que isso.
Esse posicionamento de si, por si e para si costuma surpreender. Sei que às vezes, sem premeditação, deixo as pessoas em choque. Quando acontece, acho engraçado.
Uma vez, recĂ©m-mudados para SĂŁo Paulo, uma mĂŁe em porta de escola pergunta o que nos levou a abandonar o Rio de Janeiro. Ela falava em um tom mais ou menos como a cidade maravilhosa versus a terra da garoa. Respondi sem pensar: “porque deu vontade”. Claro, quanto maior o esforço necessário, maior a vontade tem que ser. EntĂŁo, naturalmente, uma mudança dessas pressupõe um desejo quase intransponĂvel. A julgar pela expressĂŁo que recebi como resposta, a jovem senhora deve estar atĂ© hoje, 15 anos depois, tentando se recuperar do susto de conhecer alguĂ©m que faz algo porque tem vontade. Sempre que me lembro dessa moça, fico na torcida para que ela tenha saĂdo dali e feito algo sĂł assim, porque deu vontade.