Para Solange Vidal Moreira
Parada em frente ao tĂşmulo da mĂŁe, respiro um ar raso. Detesto cemitĂ©rios e tenho receio de se respirar fundo demais, partĂculas de gente morta venham parar dentro das minhas narinas.
A mĂŁe tinha mania de chegar em casa, depois de um enterro e lavar as mĂŁos, imediatamente. Aquilo, nunca questionado, passou pra todos nĂłs, em casa. NĂŁo Ă© do morto que queremos nos livrar: Ă© da morte.
Parada em frente ao tĂşmulo da mĂŁe que Ă© tambĂ©m de um monte dos Vidal, coloco duas rosas que ela mesma plantou e que floresceram quando eu estava lá, na casa dela que Ă© minha, ainda que na minha casa a mĂŁe já nĂŁo está. Olho a pedra de mármore, o nome dela lá, pra ter certeza de que de um pesadelo nĂŁo se acorda. Logo aqui ela está, debaixo dessa pedra pesada, tĂŁo perto, tĂŁo morta, o mais morta possĂvel. EstĂŁo tambĂ©m bem mortos o meu avĂ´, a minha avĂł, tio, tias. Fiquei pensando que, caso morresse naqueles dias, eu tambĂ©m iria parar ali, com eles. EstĂŁo todos tĂŁo perto e, ao mesmo tempo, nesse alĂ©m que leva a minha gente para onde nunca mais se vĂŞ.
Escrevo neste dia em que mais uma de nĂłs morreu. SĂŁo 27 de fevereiro. Hoje, minha tia, irmĂŁ da mĂŁe, a mais prĂłxima, vai se juntar Ă famĂlia dos mortos. Imagino uma viagem tranquila lá para onde o vento faz a curva porque a tia conversava com espĂritos. Ela dizia que carregava o sol no nome. Era verdade. Ela se chamou a vida inteira, Solange. Penso na alegria dela e nĂŁo entendo. A vida era normal; nĂŁo tinha motivos pra tanta alegria. Ainda assim, era feita de uma coragem inabalável. Quando eu me sentia fora do eixo, ligava pra ela. “Vou te benzer, minha filha. Fecha os olhos.” Hoje, os olhos fechados sĂŁo dela. Logo hoje que me sinto tĂŁo fora dos eixos.
A sensação em frente ao tĂşmulo da famĂlia Ă© de total finitude, esgotamento, derrota. Ainda que eu esteja ali a olhar para aquele triste espetáculo, vejo pouquĂssima saĂda para a pergunta: o que fazer pra enganar a morte? IrreversĂvel que Ă©, leva o jogo a sĂ©rio e nĂŁo dá segunda chance. Mas de vĂŞ-la assim, cortando raĂzes sem cerimĂ´nia, penso que devo fazer alguma coisa para enganá-la. Afinal, a vida Ă© um jogo que, em quantidade, ganho eu. Em qualidade, ela. Ela Ă© que dá o xeque-mate. Mas Ă© meu o privilĂ©gio da diversĂŁo, dos amores, dos prazeres, do trabalho. Quem toma vinho enquanto fala de presente, passado e futuro nĂŁo Ă© a morte. Quem se espalha em geografias para encontrar e viver amores nĂŁo Ă© ela. Quem vai vendo a vida crescer, se modificar sou eu, nĂŁo Ă© ela. Ela sai de um buraco, uma espĂ©cie de caverna. Sai com fome e vai devorar cabeças por aĂ. Cedo ou tarde, nos encontra. Mas enquanto nĂŁo nos escolhe, quem está acordado e se divertindo, doendo e se recuperando somos nĂłs. É a nossa pele que se arrepia, transpira, enruga, Ă© tocada. A morte, coitada, ninguĂ©m quer. É uma perdedora que, para triunfar, tira, subtrai. Existe na derrota.
Os meus mortos eu carrego na palavra, no sobrenome, no semblante da filha, no perfil do filho, nas pernas que cruzo e lá, no contorno que se forma, vejo a famĂlia. Salvo a vida de cada um deles porque estou viva atĂ© que me provem o contrário. E quando chegar esse dia, quero, como a minha tia, ir pra esse alĂ©m levando um sol, senĂŁo no nome, nos olhos.