🔓 O ronronar do outono

A chegada da nova estação e a esperança de em breve caminhar pelas ruas sem a nostalgia de um cômodo com ar-condicionado
Ilustração: Bruno Schier
09/04/2023

Embarcado no antigo bonde da Praia Vermelha, do qual se dizia “simpatizante”, Rubem Braga rumava em direção a Botafogo naquele dia 12 de março de 1935. “Era o bonde dos soldados do Exército e dos estudantes de Medicina”, conta, antes de elogiar a brandura dos condutores. Havia liberdade para se “colocar os pés e mesmo esticar as pernas sobre o banco da frente”, sem que isso rendesse advertências mais agudas.

Fazia calor no Rio. Tanto calor que, se abrandada a temperatura, a população continuaria a suar “por força do hábito durante ou quatro ou cinco semanas ainda”, diz Rubem. Os passageiros não fugiam à regra. Transpiravam a ponto de molhar a camisa.

O cronista tomara o bonde na Praça José de Alencar e passava pela Rua Marquês de Abrantes quando o fato se sucedeu. Uma folha, trazida pelo vento, tocou o lado esquerdo de seu rosto.

De pronto, Rubem tentou esticar os olhos até o interior de um botequim para checar as horas. Tiro n’água. Mas a seu lado estava um homem elegantemente vestido, decerto munido de um relógio.

— O senhor poderia ter a gentileza de me dar as horas? — perguntou-lhe.

O homem foi preciso:

— Treze e quarenta e oito.

Rubem agradeceu e então comentou, num murmúrio:

— Chegou o outono.

Seu interlocutor não se espantou, tampouco se comoveu, com a frase. Queria apenas chegar ao ponto de desembarque. Mas, para o cronista, esse foi o ápice da curta viagem. O outono começava a tomar a cidade, a ocupar os espaços ainda dominados pelo verão em lenta retirada. Era motivo de celebração, ou de alívio.

Oitenta e oito anos depois, lembro a história narrada por Rubem para igualmente saudar o início da nova estação. Continuamos suando, é verdade, mas agora esperançosos de que em breve será possível caminhar pelas ruas sem a nostalgia de um cômodo com ar-condicionado.

Como se falava outrora, o verão tem muita imprensa. Pelo menos aqui no Rio.

Quando começam a pipocar as matérias sobre qual será o “quente” da estação — tudo, posso garantir —, os cariocas já se transformaram em frangos de padaria. Giram no espeto sob o bafo tórrido das televisões de cachorro.

Ah, mas e o espetáculo visual?, alguém poderia perguntar.

Que me desculpem, mas se o assunto é beleza, o outono também sobra na turma. A luz chapada dá lugar à suavidade dos meios-tons que o verão tanto despreza. É quando a cidade se deixa ver em suas nuances, no detalhe, o sussurro em vez do grito.

Explicam os cientistas que a sutileza da luz do outono se deve à queda da umidade e à forma como as moléculas de ar absorvem e difundem a radiação solar. Com o sol mais baixo no céu, a luminosidade incide indiretamente sobre a Terra, permitindo que as cores vibrem.

Não sendo cientista, me limito a observar o céu límpido, o resplendor da lua, ainda que minguante, o assovio da brisa que se abeira ao fim da tarde, avisando que a noite virá e será fresca. No outono, a paisagem ronrona como um gato em estado de preguiça. Talvez, com sorte, uma folha também resvale em nosso rosto. Aproveitemos.

E a quem perdeu a poesia, que valha ao menos o pragmatismo: a conta de luz certamente estará mais barata.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho