Sem beber álcool, sinto-me tonto. Atravesso dias e noites assim: numa quase vigília, quase sono, o medo de tropeçar e definitivamente ir ao chão. A vida, punk de um jeito que Malcom McLaren algum jamais poderia imaginar, segue como um roteiro engavetado de José Mojica Marins, um arremedo chinfrim de Orwell, misturando sabores de tragédias com bananeiras de papelão, Black Mirror & Atlântida, circo e política. No centro da tela, um sujeito de cabelo preto lambido e bigodinho chapliniano ri. Nada nele nos remete a um cavalheiro. O sinal de alerta soa, os aviões cruzam os céus, bombas caem, luzes se apagam, tudo desmorona. O sujeito no centro da tela veste camisa de time de futebol e, desajeitado como ele só, faz embaixadinhas. Uma, duas, errou. Recomeça: uma, duas, errou. E, assim, vai errando e recomeçando cada vez com mais esmero, fazendo com que percebamos ser essa a sua mais valiosa moeda. Daí, seu riso.
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Segui Clarice numa crônica antiga e, naquela noite, me recusei a ler o texto do mundo. O telejornal local anunciava que, em plena pandemia, os hotéis de Morro de São Paulo lotavam. No entanto, a maioria dos turistas desfilava nas ruas sem máscara. Era essa a chamada da matéria. A maioria dos turistas entrando em igrejas, comprando lembranças, fotografando, tomando sorvetes de fruta, abrindo toalhas sobre as areias das praias, rindo, falando e aproveitando o que o dinheiro de cada um pode proporcionar. Sem máscara. Turistas pedindo acarajé, bebendo cerveja, experimentando cravinho, deliciando-se com moquecas e peixadas. Sem máscara. Apenas dez por cento da população brasileira vacinada até ali. Sem máscara. Eu me recusei. Não vi. Fiquei na manchete. A chamada fora suficiente. Aquecia-se a economia? Chegava-se enfim a recompensa de um destino que se acredita paradisíaco após um ano inteiro de trabalho e reclusão? Sem máscara. A chamada já era uma surra total. Recusei-me. Nauseado, desliguei o aparelho de tevê.
No começo, lá por março de 2020, eu ainda tinha coragem. Três ou quatro vezes por semana, o Sol já se pondo por trás de Itaparica, eu descia até o Porto da Barra e tentava seguir as orientações do doutor André. “Se não quer abrir mão da cerveja e do vinho, meu amigo, caminhe.” Chegava e me deparava com tapumes impedindo o acesso às escadarias que dão na praia. Eu me apoiava na balaustrada e, assim como outros atletas que gostavam de começar suas atividades dali, me alongava por cinco minutos.
Enquanto esticava braços e pernas, aproveitava para observar ao redor. O fluxo de pessoas era muito inferior ao que víamos nos pretensos dias de “normalidade”. As medidas preventivas para se evitar a contaminação do vírus pareciam fazer efeito. Os bares mantinham suas mesas fora e devidamente afastadas umas das outras. O tabuleiro da baiana, próximo ao ponto de ônibus, vazio, o tacho sem óleo. Nas imediações, alguns solitários entrecortavam os passos, munidos com suas correias, para que seus cães cheirassem um poste ou fizessem suas necessidades. Vez ou outra, um raro ciclista passava. Já no calçadão, as pessoas caminhavam ou corriam quase sempre sozinhas. E, o mais importante, narizes e bocas majoritariamente protegidos.
Meu percurso não era longo. Consistia de seguir pela orla até o Cristo e, em seguida, retornar pelo mesmo caminho. Naquele momento, a sensação de segurança me permitia um novo e, até então, inimaginável prazer. Eu olhava as velhas paisagens e as sentia impregnadas com uma beleza austera e, ao mesmo tempo, autossuficiente. O Farol, por exemplo, reinava sobre as paredes de pedra do forte como um combatente lustroso e esguio. O mar, as areias e as pedras exibiam um diferente colorido e volume. Estavam mais brilhantes. Apresentavam outra pulsação. Eu me encantava de tal maneira que desconfiava dos efeitos futuros dos exercícios físicos no meu corpo. Decorria uma hora e eu não me sentia cansado. Parecia fácil.
Então começaram a aparecer as faces. Foi aos poucos. Elas foram se insinuando à medida que o friozinho de junho se anunciava. Não fazia nem três meses que eu caminhava e já era possível ver o rosto rechonchudo de uma criança de mãos dadas com os pais. Prossegui em meu passo. Mais adiante, outra. Dessa vez, um senhor de bigodes grisalhos e olhos fundos. Passou bem ao meu lado. Quase me tocou. Retornei para casa assustado.
No dia posterior, saí inseguro. Porém, tudo ocorreu bem. Havia máscaras coloridas, imitações de bocas de palhaços, dizeres engraçados, protestos infantis e máscaras descartáveis. Era lindo e reconfortante a ponto de eu quase poder admirar o cenário novamente. “Foi casualidade”, disse para mim mesmo.
A partir daí, o horror e o caos não cederam espaço a enganos. Um único dia impôs a mim uma assustadora profusão de bocas, dentes, narizes, pelos, queixos e bochechas dos mais variados formatos e cores, expressões faciais que se complementavam e se mesclavam em minha memória de maneira macabra, perversa e flagrantemente obscena. O doutor André que me desculpasse, mas eu seria obrigado a desobedecê-lo. Ficaria somente com a cerveja e o vinho. O que estava por trás dos panos era algo que eu não estava preparado para enfrentar. Algo extremamente vil.