🔓 O pôr do sol do jovem pai

O filme “Aftersun”, entre tantas outras nuances, reforça que as batalhas com a saúde mental são um caso extremamente sério
Cena de “Aftersun”, da diretora Charlotte Wells
13/01/2023

Meu interesse pelo tema da maternidade é público e divulgado. Escrevo com frequência sobre isso. É pessoal, é social, é cultural, é interessante, é misterioso, é tabu. Além de tudo isso, é íntimo: sou filha, sou mãe. É uma vida em construção através desses conceitos que podem ser, culturalmente, antagônicos, ainda que isso possa ser um equívoco e trazer consequências devastadoras para quem se vê inserido neles.

À minha volta, mulheres — filhas e mães — que refletem, pensam, questionam, sofrem dentro dos seus papéis, as expectativas próprias e alheias, as culpas, enfim. Há uma outra nuance das relações entre pais e filhos, não tão elaborada por mim, mas que surge como urgência de tema a partir de um filme. Aftersun é o primeiro longa da cineasta escocesa radicada em Nova York, Charlotte Wells e, fundamentalmente, lida com aspectos de saúde mental, ou a porosidade dessa saúde mental, a partir de uma semana de férias de um pai e uma filha em um resort na Turquia.

A partir daí, a teia de fragilidades que compõe a vida de um pai jovem, massacrado pela responsabilidade parental e tolhido de uma vida que não é a dele, se alastra em uma marcha de tempo. Utilizo a expressão “marcha de tempo” porque, ainda que sejam, em sua maioria, sutis os sinais de desamparo desse homem, eles sempre estão lá, num contínuo crescendo, como se a dilatação da melancolia nos deixasse ver, pela fina pele, as entranhas da pesada besta que se aninha no nosso peito. Um peso que vai, lentamente, se colocando no nosso colo até que respirar se torna artificial e difícil. Desde o início existe esse ar melancólico que banha aquelas férias solitárias entre dois jovens, o pai e a filha. Há elementos cruciais que destacam essa linha cinza que acompanha o sol turco dos dois. Do ponto de vista cultural e geográfico, entrelaçadamente, há um desalento e uma prostração de certas famílias britânicas que podem caracterizar o tempo passado em resorts que levam a irônica definição de all inclusive. Mas pouco está incluído, além das bebidas ruins e dos sorvetes aguados. Ali, outros corpos à procura de sol, de fuga, de calor tanto metafórica quanto realmente, se destacam da realidade e flutuam durante um pacote de férias no Mediterrâneo. Eu diria que é um hábito bastante britânico o de procurar esses locais para a garantia do tempo bom, ainda que por uma semana apenas que seja. Há os pacotes caros, de luxo e sotaques da alta classe. Há os pacotes que podem pagar Callum e Sophie. O esnobismo é uma indústria nesta ilha. Todos podem frequentar o Mediterrâneo, mas nem todos podem frequentar o Mediterrâneo.

Esse aspecto econômico e a dificuldade financeira de Callum é uma nuvem escura que constrange, muito mais do que limita os dias de pai e filha. Talvez eu veja mais uma camada dessa melancolia por já viver nestas terras há mais de vinte anos. Já observei Callum e Sophie muitas vezes em aviões, em hotéis, nos comerciais e nos planos de financiamento para as férias que começam a ser pagas no dia, oficialmente, mais triste do ano, o Blue Monday, a terceira segunda do mês de janeiro, quando o cinza e o frio já não têm a alegria antecipada do Natal e a vida, com promessas de feliz ano novo, se repete cada dia mais real e opressiva.

A máscara de mergulho que a filha perde no mar é seguida por uma sequência do pai, na água profunda, tentando encontrar o objeto desaparecido. Ainda que no resort haja lojas que vendam, precisamente, quinquilharias de férias, a apreensão do pai e sua determinação em achar a máscara são evidentes o suficiente para a própria filha tentar consolá-lo pela perda, não do objeto, mas do dinheiro.

É muito sensível o desenvolvimento das cenas que mostram o desejo em repetição de Callum por um tapete caro, de uma loja no resort. Um tapete turco, com estampas elaboradas, cores em tons de vermelho, tudo vivo, tudo forte, que ele acaba comprando por um preço alto que ilustra a urgência do prazer em uma vida tão jovem e já esmagada por uma realidade massacrante, sem saída, triste, repetitiva em demandas e procuras por fuga. Escapar em um tapete, através de um tapete, em cima de um tapete, por um momento e por oitocentas libras que não tem.

É curioso pensar que, talvez, a maioria dos homens com os quais eu conviva, seja por amizade, laços familiares ou outras relações significativas, sejam pais solteiros ou separados. O meu próprio pai é viúvo. Confesso que pouco faço o exercício da empatia aqui. Mas penso, de novo, na teia frágil e quase invisível que se alastra na construção da identidade desses homens, desses pais. Uma das últimas cenas do filme, talvez a mais nitidamente comovente, traz Callum e Sophie dançando, no último dia de férias, a música Under Pressure (sob pressão), da banda Queen. E, mais uma vez, tenho a sensação de algo pesado no peito, uma pata de uma besta pressionando, não só minha caixa torácica, mas minha boa vontade de enxergar beleza na vida. Acabo entendendo bem Callum. Fico, completamente, do lado dele. Ele tem razão, seja lá o que ele tenha feito.

Numa das cenas de diálogo entre pai e filha, Callum diz a Sophie que ela pode morar onde quiser. Que ela pode ser o que ela quiser. Quando ele diz isso à filha, enquanto ela está deitada no seu colo e ele acaricia seus cabelos, não é exatamente com ela que ele quer falar: ele sussurra a si próprio e reconhece para si mesmo que não tem mais essas escolhas que oferece à filha.

Conheci alguém que, em dezembro de 2017, também não conseguiu mais continuar. A imagem do pai dos meus filhos colocando a graveta preta, o paletó, as abotoaduras para ir enterrar o melhor amigo, é ainda uma imagem que me atormenta, como se, à noite, saísse por trás do guarda-roupas e flutuasse na minha insônia. As batalhas com a saúde mental, particularmente, em homens são um caso sério. Ainda que a convenção não seja a única a ganhar responsabilidade, posso acreditar com facilidade que, como em nós mulheres, papéis e expectativas se debruçam nos ombros de meninos e rapazes, construindo homens em cima de um terreno de fino gelo, delicado, instável. Uma sólida e irrefutável fragilidade. Quem diria que sorrisos e silêncio pudessem ser sintomas de uma doença. Aquela que é tão invisível quanto terminal.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

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