Meu interesse pelo tema da maternidade Ă© pĂşblico e divulgado. Escrevo com frequĂŞncia sobre isso. É pessoal, Ă© social, Ă© cultural, Ă© interessante, Ă© misterioso, Ă© tabu. AlĂ©m de tudo isso, Ă© Ăntimo: sou filha, sou mĂŁe. É uma vida em construção atravĂ©s desses conceitos que podem ser, culturalmente, antagĂ´nicos, ainda que isso possa ser um equĂvoco e trazer consequĂŞncias devastadoras para quem se vĂŞ inserido neles.
À minha volta, mulheres — filhas e mães — que refletem, pensam, questionam, sofrem dentro dos seus papéis, as expectativas próprias e alheias, as culpas, enfim. Há uma outra nuance das relações entre pais e filhos, não tão elaborada por mim, mas que surge como urgência de tema a partir de um filme. Aftersun é o primeiro longa da cineasta escocesa radicada em Nova York, Charlotte Wells e, fundamentalmente, lida com aspectos de saúde mental, ou a porosidade dessa saúde mental, a partir de uma semana de férias de um pai e uma filha em um resort na Turquia.
A partir daĂ, a teia de fragilidades que compõe a vida de um pai jovem, massacrado pela responsabilidade parental e tolhido de uma vida que nĂŁo Ă© a dele, se alastra em uma marcha de tempo. Utilizo a expressĂŁo “marcha de tempo” porque, ainda que sejam, em sua maioria, sutis os sinais de desamparo desse homem, eles sempre estĂŁo lá, num contĂnuo crescendo, como se a dilatação da melancolia nos deixasse ver, pela fina pele, as entranhas da pesada besta que se aninha no nosso peito. Um peso que vai, lentamente, se colocando no nosso colo atĂ© que respirar se torna artificial e difĂcil. Desde o inĂcio existe esse ar melancĂłlico que banha aquelas fĂ©rias solitárias entre dois jovens, o pai e a filha. Há elementos cruciais que destacam essa linha cinza que acompanha o sol turco dos dois. Do ponto de vista cultural e geográfico, entrelaçadamente, há um desalento e uma prostração de certas famĂlias britânicas que podem caracterizar o tempo passado em resorts que levam a irĂ´nica definição de all inclusive. Mas pouco está incluĂdo, alĂ©m das bebidas ruins e dos sorvetes aguados. Ali, outros corpos Ă procura de sol, de fuga, de calor tanto metafĂłrica quanto realmente, se destacam da realidade e flutuam durante um pacote de fĂ©rias no Mediterrâneo. Eu diria que Ă© um hábito bastante britânico o de procurar esses locais para a garantia do tempo bom, ainda que por uma semana apenas que seja. Há os pacotes caros, de luxo e sotaques da alta classe. Há os pacotes que podem pagar Callum e Sophie. O esnobismo Ă© uma indĂşstria nesta ilha. Todos podem frequentar o Mediterrâneo, mas nem todos podem frequentar o Mediterrâneo.
Esse aspecto econômico e a dificuldade financeira de Callum é uma nuvem escura que constrange, muito mais do que limita os dias de pai e filha. Talvez eu veja mais uma camada dessa melancolia por já viver nestas terras há mais de vinte anos. Já observei Callum e Sophie muitas vezes em aviões, em hotéis, nos comerciais e nos planos de financiamento para as férias que começam a ser pagas no dia, oficialmente, mais triste do ano, o Blue Monday, a terceira segunda do mês de janeiro, quando o cinza e o frio já não têm a alegria antecipada do Natal e a vida, com promessas de feliz ano novo, se repete cada dia mais real e opressiva.
A máscara de mergulho que a filha perde no mar é seguida por uma sequência do pai, na água profunda, tentando encontrar o objeto desaparecido. Ainda que no resort haja lojas que vendam, precisamente, quinquilharias de férias, a apreensão do pai e sua determinação em achar a máscara são evidentes o suficiente para a própria filha tentar consolá-lo pela perda, não do objeto, mas do dinheiro.
É muito sensĂvel o desenvolvimento das cenas que mostram o desejo em repetição de Callum por um tapete caro, de uma loja no resort. Um tapete turco, com estampas elaboradas, cores em tons de vermelho, tudo vivo, tudo forte, que ele acaba comprando por um preço alto que ilustra a urgĂŞncia do prazer em uma vida tĂŁo jovem e já esmagada por uma realidade massacrante, sem saĂda, triste, repetitiva em demandas e procuras por fuga. Escapar em um tapete, atravĂ©s de um tapete, em cima de um tapete, por um momento e por oitocentas libras que nĂŁo tem.
É curioso pensar que, talvez, a maioria dos homens com os quais eu conviva, seja por amizade, laços familiares ou outras relações significativas, sejam pais solteiros ou separados. O meu prĂłprio pai Ă© viĂşvo. Confesso que pouco faço o exercĂcio da empatia aqui. Mas penso, de novo, na teia frágil e quase invisĂvel que se alastra na construção da identidade desses homens, desses pais. Uma das Ăşltimas cenas do filme, talvez a mais nitidamente comovente, traz Callum e Sophie dançando, no Ăşltimo dia de fĂ©rias, a mĂşsica Under Pressure (sob pressĂŁo), da banda Queen. E, mais uma vez, tenho a sensação de algo pesado no peito, uma pata de uma besta pressionando, nĂŁo sĂł minha caixa torácica, mas minha boa vontade de enxergar beleza na vida. Acabo entendendo bem Callum. Fico, completamente, do lado dele. Ele tem razĂŁo, seja lá o que ele tenha feito.
Numa das cenas de diálogo entre pai e filha, Callum diz a Sophie que ela pode morar onde quiser. Que ela pode ser o que ela quiser. Quando ele diz isso à filha, enquanto ela está deitada no seu colo e ele acaricia seus cabelos, não é exatamente com ela que ele quer falar: ele sussurra a si próprio e reconhece para si mesmo que não tem mais essas escolhas que oferece à filha.
Conheci alguĂ©m que, em dezembro de 2017, tambĂ©m nĂŁo conseguiu mais continuar. A imagem do pai dos meus filhos colocando a graveta preta, o paletĂł, as abotoaduras para ir enterrar o melhor amigo, Ă© ainda uma imagem que me atormenta, como se, Ă noite, saĂsse por trás do guarda-roupas e flutuasse na minha insĂ´nia. As batalhas com a saĂşde mental, particularmente, em homens sĂŁo um caso sĂ©rio. Ainda que a convenção nĂŁo seja a Ăşnica a ganhar responsabilidade, posso acreditar com facilidade que, como em nĂłs mulheres, papĂ©is e expectativas se debruçam nos ombros de meninos e rapazes, construindo homens em cima de um terreno de fino gelo, delicado, instável. Uma sĂłlida e irrefutável fragilidade. Quem diria que sorrisos e silĂŞncio pudessem ser sintomas de uma doença. Aquela que Ă© tĂŁo invisĂvel quanto terminal.