O olhar do personagem Ă©, sem dĂşvida, a tĂ©cnica mais sofisticada criada por Flaubert. Impressionante sobretudo no momento da morte da personagem central em Madame Bovary, no romance que vem a ser chamada de A BĂblia da ficção.
Com efeito, Emma em torno, lentamente, como quem desperta de um sonho; depois, com a voz nĂtida, pediu o espelho e esteve inclinada para ele algum tempo, atĂ© que dos olhos se desprenderam duas grossas lágrimas. Em seguida, soltou um profundo suspiro e deixou cair a cabeça no travesseiro.
No mesmo instante, começou-lhe o peito a arfar rapidamente. A lĂngua saiu toda da boca; Emma relanceava os olhos, num movimento continuo, amorteciam-se como dois globos da lâmpada que se apagam; e atĂ© a julgariam já morta se nĂŁo fosse a aceleração do arfar das costelas sacudidas por uma respiração furiosa, como se a alma estivesse aos pulos para se desprender. Felicidade ajoelhou diante do Crucifixo e o prĂłprio farmacĂŞutico flectiu um pouco os joelhos, ao passo que Canivet olhava vagamente para a praça; Bournisien continuava a orar com o rosto inclinado para a beira da cama; e sua comprida batina preta arrastando-se atrás de si pro chĂŁo. Charles estava do outro lado, de joelhos, e com os braços estendidos para Emma. Pegava-lhe as mĂŁos, apertava-as e estremecia a cada pancada do seu coração, como ao desmoronar de uma ruĂna. Ă€ proporção que o estertor se tornava mais forte, o eclesiástico precipitava as suas orações, que se misturavam e se confundiam com os soluços sufocados de Bovary; Ă s vezes tudo parecia desaparecer no surdo murmĂşrio das sĂlabas latinas que tangiam como dobres de finados.
De repente ouviu-se no passeio um ruĂdo de tamancos, o bater de um pau no passeio de tamanco, o bater e um pau e uma voz que se elevava, uma voz rouca que cantava.
AĂ observa-se a chegada da morte que Ă© anunciada pelo ouvido atravĂ©s da metáfora do cego, uma das mais poderosas do romance, com a força do tamanco a marcar pelo ritmo — Flaubert tinha obsessĂŁo pelo ritmo narrativo — a presença da morte dolorosa com a voz cantando os versos que resumem a tragĂ©dia de Emma. Tudo isso Ă© tĂ©cnica apurada. ApuradĂssima. A grande obra de arte precisa desses movimentos tĂ©cnicos e nĂŁo apenas de impressões. A morte de Emma exige, ainda, nĂŁo somente os olhos, mas tambĂ©m os ouvidos como se o leitor estivesse executando uma melodia. Verdadeira revolução literária.
Por isso mesmo destaque-se que a narrativa Ă© construĂda em dois movimentos.
1) Com efeito, Emma relanceava os olhos em torno, como quem desperta de um sonho; depois, com a voz nĂtida, pediu o espelho e esteve inclinada para ele algum tempo;
2) Até que dos olhos se desprenderam grossas lágrimas. Em seguida, soltou um profundo suspiro e deixou cair a cabeça no travesseiro.