🔓 O movimento dos corpos

Por enquanto, apenas nos perguntamos se na hora mais escura haverá socorro, haverá vacina, se o combustível será o suficiente para o motor dos barcos
Ilustração: João Paulo Porto
28/02/2021

Ela disse que não faria uma cirurgia nem a pau. Ok, não te culpo, pensei. Nosso número de perdas e calamidades pessoais já passou do que poderíamos considerar minimamente tolerável. Ajeitei o telefone na orelha e respondi: não tenho medo. Pra falar a verdade, querida, não estou nem aí. O problema é a anestesia, acrescentou ela, séria. E fez uma pausa. Então, retomou: lembra da Clara Nunes? Do Geraldo? Hoje quase ninguém deve saber do Geraldo, considerados por muitos tão bom quanto o Galinho de Quintino, mas ela, flamenguista igual a mim, tocava justamente naquele ponto do nervo, onde dói.

Juntos, sobrevivemos à Ditadura, à Aids, ao sequestro da poupança da Era Collor, ao lento definhar dos cadernos culturais, à substituição dos cinemas de bairro por igrejas neopentecostais, à extinção e o renascimento dos discos de vinil e, pasmem, até ao estridente e abominável fenômeno do lamento-canção batizado de “arrocha”.

Eu não tenho medo de morrer em hospital. Contudo, nós dois não podíamos negar, sofremos muitas e importantes baixas nas últimas duas décadas. Ela tem refluxo. Pra fugir da mesa de operação, dorme com travesseiro especial e evita certos alimentos. Assim são meus amigos. Quase todos hipocondríacos, depressivos e panicados. Do roqueiro gordinho e grisalho que só anda de preto à solitária Emily Dickinson vinda do Sertão. Meio tontos, vamos nos arrastando enquanto observamos a paisagem recortada de escombros.

Pensava nesse telefonema quando, meio tonto, repeti o gesto de abrir e fechar a mão ordenado pelo anestesista.

A consciência despertou vagarosamente. O corpo continuava imóvel. As pálpebras, fechadas. Aos poucos, um ruído foi ganhando força e era possível distinguir as vozes. O médico sairia de férias em poucos dias, havia comprado um veleiro e pretendia descer o Paraguaçu.

— Sua mulher está animada?

— Ela estaria mais se fôssemos pra Costa do Sauípe.

— E os meninos?

— O Heitor acha legal.

— E o Tutu?

— Ah, ele prefere jogar videogame em casa.

Abri os olhos e vi os dois, em seus jalecos brancos, sentados no canto da sala. O anestesista de costas para mim. Eu ainda não conseguia me mover. Nem falar. Teria dado algo errado? Não sentia medo. Eu ainda respirava. Resolvi relaxar e aguardar o desencadeamento natural da coisa. Cerrei novamente as pálpebras.

— Qual a marca do veleiro? Tem foto dele aí?

— Foto eu não tenho. Mas é um Atol. Fabricado nos anos 80. Quando o comprei, o mastro estava quase que inteiramente destruído. Graças a ele, o dono foi meu camarada. Paguei uma mixaria. Você conhece de barcos?

— Não, não. É só curiosidade.

Imaginei o médico em sua roupa branca a descer o rio, mulher e filho ao lado. Ele segurando o leme e a mulher de chapelão e óculos escuros. Por um instante, admirei a beleza antiga e vibrante de Cachoeira e confrontei a imagem pacata de São Félix, fixadas em minha memória desde que participei da Flica como autor convidado. Quantos meninos baianos não devem ter feito a travessia entre as duas cidades em navegações muito mais frágeis do que a de um veleiro, talvez estimulados pela leitura de As aventuras de Tom Sawyer e a fantasia que o Paraguaçu fosse o Mississippi? Quantos jovens não enxergaram de suas fronteiras a canoa em que o pai de A terceira margem do rio decide morar após abandonar sua família, questionando-se pela falta de seus próprios pais, tantas as carências e abandonos repetidos na história de nosso país?

Continuo imóvel na maca. Gostaria de voltar a Cachoeira acompanhado de alguém que gosto muito. Terei chance? Poderíamos nos sentar à beira da água, beber uma cerveja honesta, comer maniçoba e fazer planos de viagens. Ele talvez cantarolasse com voz pesada e sentida: As coisas passando eu quero/ é passar com elas/ eu quero/ e não deixar nada mais quando do que as cinzas de um cigarro/ e a marca de um abraço no seu corpo/ Não / não sou eu quem vai ficar no porto chorando. E com o Macalé, faríamos a travessia do rio-tempo-e-rio-lugar, certos de que não haveria outra chance, certos que não haveria outro rio além desse.

Por enquanto, apenas assistimos à evolução das águas e nos perguntamos se na hora mais escura haverá socorro, haverá vacina, se o combustível será o suficiente para o motor de cada um dos barcos atracados ao cais.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

Rascunho