Na coluna de hoje gostaria de mostrar como um texto pode mudar de uma versão para outra (minha ilusão é que talvez tenha utilidade para alguém, algum dia).
Para isso, vou pegar um parágrafo de um livro que estou escrevendo com Marcus Aurelius Pimenta e mostrar como ele ficou depois de algumas mexidas. Será mais ou menos como um daqueles “Jogo dos 7 erros” que há nas revistas de palavras cruzadas. Mas, no lugar dos desenhos, teremos palavras.
Aqui está o texto na sua versão 7:
Ela então deitou na rede, fechou os olhos e se acomodou. Ficou ouvindo o barulho do riacho, o canto dos pássaros e o vento chacoalhando as folhas das árvores. O céu estava cinzento. Vinha uma chuva gostosa, daquelas que fazem a gente dormir e sonhar.
Acho que não estava ruim (afinal, já tínhamos chegado na sétima versão). Mas era melhorável. Aqui está ele na sua versão 10:
Ela se deitou na rede e fechou os olhos. Ouviu o barulho do riacho, o canto dos pássaros e o vento chacoalhando as folhas das árvores. O ar ficou mais fresco e pingos grossos começaram a bater nas telhas da varanda. Então caiu uma chuva gostosa, daquelas que fazem a gente dormir e sonhar.
Na primeira versão há um monte de “ous” nas duas primeiras linhas: “deitou”, “fechou”, “acomodou”, “ficou”. Eu e Marcus só percebemos isso lendo o texto em voz alta pelo skype. E nos pareceu horrível.
A saída foi fazer algumas mudanças. O “se acomodou” foi cortado. Além da rima indesejável, ele era inútil. Alguém que deita numa rede e fecha os olhos já está acomodado. E cortando o “se” deste ponto pudemos colocá-lo no “se deitou”, de onde o tínhamos arrancado para evitar a repetição.
Já o “ficou ouvindo” foi trocado por “ouviu”. O gerúndio esfriava a ação. E o “ou-ou” parecia uma coruja piando. É verdade que ainda sobraram dois “ous”. Mas antes eram quatro. Saímos no lucro.
Outra mudança importante: na primeira versão, o aviso da chuva é “o céu estava cinzento”. Só que essa expressão ia contra o sentimento que queríamos para a cena. Era um momento feliz da personagem. Mas um céu cinzento não oferecia essa ideia ao leitor. Pelo contrário. Sugeria tempestade, medo, notícias ruins se aproximando.
Porém, não podíamos simplesmente cortar a frase. A chuva não poderia vir do nada. Ela tinha que ser anunciada, avisada. Então trocamos o céu cinzento por “o ar ficou mais fresco e pingos grossos começaram a bater nas telhas da varanda”.
Ou seja, saiu o prenúncio de algo ruim e entraram um “ar mais fresco” e aquele agradável barulhinho de pingos de chuva no telhado.
Aí sim, acho que conseguimos passar a ideia que desejávamos. O “ar fresco” indicava alívio e mudança. E o barulhinho de chuva dava uma sensação de aconchego, de estar de volta ao lar, o que é reafirmado por “telhas da varanda”, que antes não estava presente no parágrafo.
Mas me parece que a troca mais importante aconteceu nas últimas linhas. Na primeira versão, a chuva é apenas uma promessa: “Vinha uma chuva gostosa”. Isso não nos satisfazia. Não parecia um fecho para a ação. Era algo que ainda iria acontecer.
Por isso substituímos o trecho por “Então caiu uma chuva gostosa”.
O “então”, que antes estava no começo do parágrafo, veio para o final, dando uma ideia de consequência, de que tudo o que aconteceu antes trouxe a história para este momento. E no novo modo a chuva já cai. O fato se consuma.
Enfim, o parágrafo que usei como exemplo é apenas a descrição de uma mulher que se deita na rede num dia de chuva. Mas mesmo assim foram necessárias várias modificações para que ela dissesse exatamente o que queríamos dizer (e certamente mexeremos em mais alguns detalhes na próxima versão).
Essas mudanças microscópicas parecem insignificantes, mas elas vão se acumulando e, no final das contas, podem fazer a diferença entre algo bem escrito e algo que fica no quase.
E talvez esse trabalho de relojoeiro, de buscar a musicalidade da frase, a palavra exata, a tradução perfeita do sentimento, seja a parte mais divertida de escrever.