No entardecer escurecido de inverno, tudo era sombra atĂ© o limite da faixa avermelhada que pintava o cĂ©u na parte visĂvel do horizonte. Repousou o feixe de lenha no chĂŁo, sentou-se no banco de tronco e tirou as botinas Ăşmidas, pesadas da terra argilosa. A luz do candeeiro, que já deveria vazar pelas gretas largas da pequena janela, estranhamente mantinha-se recolhida ao pavio apagado. Um silĂŞncio incomum realçava o zumbido de um marimbondo que esvoaçava no entra e sai do pequeno tĂşnel de barro colado ao batente da porta de entrada. Soleira adentro, do fogĂŁo a lenha quase apagado, o bule de cafĂ© pretejado exalava um aroma da bebida ressequida pelo tempo de abandono sobre o fogo.
As circunstâncias anormais do funcionamento da casa e a atmosfera insĂłlita eram reforçadas em cada novo detalhe, revelando uma condição de inevitável desordem. TrĂŞs passos em direção ao quarto e o impacto da angustiante cena o fez apagar e ir ao chĂŁo por alguns minutos antes de recobrar a consciĂŞncia e confirmar que a tragĂ©dia a sua frente era mesmo real: na travessa central, um nĂł de mula, ensinado pelo pai para o uso no trabalho, sustentava a corda tensionada pelo peso corporal do irmĂŁo mais velho, que pairava a trinta centĂmetros do chĂŁo batido. Era o resultado, enfim exitoso, do impulso suicida que molestava o primogĂŞnito desde o tempo em que a mĂŁe fora internada pelas primeiras vezes na clĂnica psiquiátrica que viria a ser sua morada mais constante.
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Semanas depois, ouviu as primeiras vozes que pareciam brotar da parede da cabeceira da cama. Mais adiante, o dono da voz se apresentou e era um bicho disforme, metade homem, metade animal, de chifres e dentes aparentes. Inicialmente, o bicho era zombeteiro e, entre outras galhofas, prometia levá-lo a uma caixa de joias e moedas de ouro enterrada em lugares que mudavam a cada nova aparição. Ă€ medida que o tinhoso se mostrava mais nĂtido e personificado, as zombarias e promessas deram lugar a ameaças que o amedrontavam e que o levaram, algumas vezes, a reações violentas de contato corporal com lutas de rolar pelo chĂŁo.
A regularidade da presença e a familiaridade enfraqueceram o medo, e o bicho se tornou uma companhia suportável. Numa das refregas, subiu no cangote do peçonhento e saiu à rua agarrado às suas crinas e orelhas, como fazia com os potros xucros quando era meninote. Nesse tempo, se empenhava em cavar obstinadamente o quintal a procura da caixa de joias e recolhia, onde encontrava, toda espécie de objetos refugados, apoiado na ideia de que seriam transformados em pedras preciosas, moedas de ouro e colares de diamantes.
Em tratamento, a frequĂŞncia das visitas do bicho trapaceiro ralentaram. Nos Ăşltimos relatos, nĂŁo mais se fazia menção ao chifrudo. DifĂcil foi demovĂŞ-lo da mania de recolher e ajuntar objetos dos mais diversos formatos, cores e texturas. Os papĂ©is seriam transformados em dinheiro, tampinhas de garrafa em camafeus dourados, britas em esmeraldas e safiras.
Os tesouros imaginários foram, naquele perĂodo, um precioso recurso para fazer suportável uma vida deslocada para o limiar do inferno.