🔓 O inferno é aqui mesmo

Quando tesouros imaginários são um precioso recurso para tornar suportável uma vida deslocada
Ilustração: Oliver Quinto
06/09/2022

No entardecer escurecido de inverno, tudo era sombra até o limite da faixa avermelhada que pintava o céu na parte visível do horizonte. Repousou o feixe de lenha no chão, sentou-se no banco de tronco e tirou as botinas úmidas, pesadas da terra argilosa. A luz do candeeiro, que já deveria vazar pelas gretas largas da pequena janela, estranhamente mantinha-se recolhida ao pavio apagado. Um silêncio incomum realçava o zumbido de um marimbondo que esvoaçava no entra e sai do pequeno túnel de barro colado ao batente da porta de entrada. Soleira adentro, do fogão a lenha quase apagado, o bule de café pretejado exalava um aroma da bebida ressequida pelo tempo de abandono sobre o fogo.

As circunstâncias anormais do funcionamento da casa e a atmosfera insólita eram reforçadas em cada novo detalhe, revelando uma condição de inevitável desordem. Três passos em direção ao quarto e o impacto da angustiante cena o fez apagar e ir ao chão por alguns minutos antes de recobrar a consciência e confirmar que a tragédia a sua frente era mesmo real: na travessa central, um nó de mula, ensinado pelo pai para o uso no trabalho, sustentava a corda tensionada pelo peso corporal do irmão mais velho, que pairava a trinta centímetros do chão batido. Era o resultado, enfim exitoso, do impulso suicida que molestava o primogênito desde o tempo em que a mãe fora internada pelas primeiras vezes na clínica psiquiátrica que viria a ser sua morada mais constante.

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Semanas depois, ouviu as primeiras vozes que pareciam brotar da parede da cabeceira da cama. Mais adiante, o dono da voz se apresentou e era um bicho disforme, metade homem, metade animal, de chifres e dentes aparentes. Inicialmente, o bicho era zombeteiro e, entre outras galhofas, prometia levá-lo a uma caixa de joias e moedas de ouro enterrada em lugares que mudavam a cada nova aparição. À medida que o tinhoso se mostrava mais nítido e personificado, as zombarias e promessas deram lugar a ameaças que o amedrontavam e que o levaram, algumas vezes, a reações violentas de contato corporal com lutas de rolar pelo chão.

A regularidade da presença e a familiaridade enfraqueceram o medo, e o bicho se tornou uma companhia suportável. Numa das refregas, subiu no cangote do peçonhento e saiu à rua agarrado às suas crinas e orelhas, como fazia com os potros xucros quando era meninote. Nesse tempo, se empenhava em cavar obstinadamente o quintal a procura da caixa de joias e recolhia, onde encontrava, toda espécie de objetos refugados, apoiado na ideia de que seriam transformados em pedras preciosas, moedas de ouro e colares de diamantes.

Em tratamento, a frequência das visitas do bicho trapaceiro ralentaram. Nos últimos relatos, não mais se fazia menção ao chifrudo. Difícil foi demovê-lo da mania de recolher e ajuntar objetos dos mais diversos formatos, cores e texturas. Os papéis seriam transformados em dinheiro, tampinhas de garrafa em camafeus dourados, britas em esmeraldas e safiras.

Os tesouros imaginários foram, naquele período, um precioso recurso para fazer suportável uma vida deslocada para o limiar do inferno.

Antonio Cestaro

É empresário do setor editorial e diretor do selo de literatura Tordesilhas. Estreou como escritor em 2012, com o livro de crônicas Uma porta para um quarto escuro. Em 2017, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com o romance Arco de virar réu.

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