🔓 O homem autoajuda

O sujeito que carrega no alforje soluções prontas, fórmulas infalíveis para transformar a vida num verdadeiro paraíso
Ilustração: Ramon Muniz
08/02/2023

Escritor e compositor de mão cheia, Antônio Maria defendia que o pior encontro casual da noite é aquele em que nos deparamos com o homem autobiográfico. “Ele chega, senta e já começa a crônica de si mesmo”, relata, contando como o tal sujeito informa nos mínimos detalhes cada passo que deu: o banho tomado logo cedo, o café “reforçado”, as notícias escolhidas nos jornais do dia.

“Quanto à roupa, nunca liguei muito, mas camisa e cueca, tenha paciência, eu mudo todo dia”, discorre o homem autobiográfico. Ao que o cronista, afiado, retruca: “O ‘tenha paciência’ é porque está absolutamente certo de que estamos com a camisa e a cueca de ontem”. A explanação do homem autobiográfico só terminará com as fatigadas ações noturnas. Vestir o pijama, jantar, deitar-se no sofá e ver televisão, com os filhos esparramados sobre a barriga.

Pensei no sujeito retratado por Maria quando, por um daqueles azares que por vezes nos assaltam em dia tranquilo, me sentei para o chope pós-trabalho. Na mesa ao lado, o casal conversava sobre a maré braba enfrentada por um terceiro, amigo da dupla. A demissão coincidira com o fim de uma longa relação amorosa, o pão só caía com a manteiga para baixo, coisa e tal. Eis que veio a frase, com relevos de iluminação: “Ele precisa entender que toda crise é uma oportunidade”.

Meu chope esquentou na hora.

Daí adiante, não consegui mais tirar os ouvidos da mesa vizinha. Queria saber até onde iria a impressionante sequência de clichês que aquele primeiro comentário desencadeou, como uma bica aberta.

Naturalmente, cada sentença era revestida de verniz intelectual. Na fala sobre as oportunidades da crise, por exemplo, houve uma longa explicação sobre ideogramas chineses. O termo “weiji”, que significa “crise”, viria da junção de dois outros — “wei” (perigo) e “ji” (oportunidade) —, resultando no vocábulo paradoxal que indica morte mas também renascimento.

Os estudiosos do mandarim já se cansaram de desmentir essa história, mas não me cabia interceder no papo, e sim observar. “A gente precisa, quando acorda, mentalizar que será um dia bom”, recomendou o rapaz. “Falar para nós mesmos: eu posso e vou conseguir”.

Àquela altura, tudo o que eu sonhava conseguir era mais um chope na pressão. E, vejam que sorte a minha, bastava pedir ao garçom.

Foi enquanto aguardava o schnitt que compreendi que ali estava uma típica figura dos nossos tempos: o homem autoajuda. Diferentemente da figura identificada por Maria, que se atinha a narrar a própria vida e os próprios feitos, esse novo tipo é um altruísta. Por mais que deixe vazar alguns rasgos de vaidade intelectual, ele realmente crê nas propriedades mágicas das frases que pronuncia. Tem sempre soluções prontas, fórmulas infalíveis. A vida é bem mais complexa, claro, mas não quebremos a empolgação do moço.

Até porque seus conselhos são invariavelmente dados em tom professoral. Ele disserta como um sábio, um prócer da racionalidade, um estudioso da alma humana. Cada problema está catalogado na mesma bula que traz a respectiva solução. Basta aplicar na dosagem recomendada. Bingo! Questão dirimida.

Antônio Maria só admitia a lucidez em dois casos: o dos bêbados e o dos poetas. Se pudesse ainda hoje fazer a ronda dos bares cariocas, talvez temesse o homem autoajuda assim como temia o autobiográfico. Mas no dia 15 de outubro de 1964 caminhava em direção ao restaurante Le Roind Point, em Copacabana, quando sofreu um infarto e não resistiu. Tinha minguados 43 anos. Como diria o homem autoajuda, ficará eternamente em nossos corações.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho