A gente passa meses juntando as garrafas pet dos refris que toma. Sim, a gente toma muito refri. E nĂŁo Ă© raro que alguĂ©m bata a campainha perguntando se tem desse tipo de material reciclável para dar. Papel velho, jornal, roupa, comida. As pessoas batem Ă porta pedindo. Mas as garrafas pet estavam sendo guardadas para uma finalidade especĂfica. SĂł que a Maria nĂŁo sabia. Ela ouviu a campainha e foi lá fora saber o que era. Encontrou, olhando pela grade, um rapaz alto, magro, de dentes separados, pedindo as garrafas de plástico reciclável. Disse que tinha. Eu disse que nĂŁo. É que iam sendo juntadas para dar a outra pessoa, mas agora fiquei em maus lençóis. Vamos lá. O jeito Ă© dar assim mesmo e começar a juntar tudo de novo. NĂŁo haverá de faltar.
Enquanto a Maria pegava as garrafas todas numa caixa de papelão, fui até o portão de grades espaçadas para ver quem estava lá esperando. Saà de roupa de dia de semana, chinelão, girei a tetra chave na fechadura meio bamba. O moço lá fora nem quis que eu terminasse de cumprimentá-lo, já me surpreendeu lendo os escritos que estavam na minha camiseta rosa: Las chicas son libres.
“A senhora não me fale nada, deixa eu tentar. Por acaso aà na sua blusa está escrito que as mulheres são livres?”, e apontava de longe na direção das letras inscritas sobre o meu peito esquerdo.
“Sim, como é que você sabe?”
Antes de dizer como, ele me perguntou: “É mexicano?”.
“É espanhol, que Ă© a lĂngua que se fala no MĂ©xico, sim, mas me diga como vocĂŞ sabe?”
Bom, ele me deu uma resposta peremptória: “Eu leio muito”. Pensei, sem dizer: mas lê em espanhol? “Eu leio muito, sabe, dona? Aprendi a ler, não tenho estudo quase nenhum, mas eu vou falar pra senhora: escola é importante, mas ler é mais”.
Sábio, ele. Que não me ouçam meus empregadores, mas olha: ler é mais. E continuou: “Meu pai e minha mãe já morreram, também não tinham estudo, mas me ensinaram algumas coisas. Dessas eu aprendi a ler, e leio muito. Gosto de livro. E tenho um sonho na vida: conhecer Cuba”.
Acho que meu queixo estava caĂdo. O rapaz enfiava as garrafas pet num saco enorme de um material resistente enquanto me falava sobre a ilha, a capital Havana, a lĂngua que queria aprender lá, os livros de histĂłria que andava lendo. NĂŁo dava para ignorar.
“Qual é seu nome?”
“É Gabriel.”
Ele nĂŁo quis saber o meu.
O Gabriel mora na rua, em algum lugar perto aqui de casa. Achei invasivo perguntar a ele por que estava na rua. Mantive um respeitoso e curioso silêncio enquanto ele falava de seus sonhos, de seus livros e de como a leitura o afetava desde sabe lá quando. Ele, enfim, me perguntou:
“A senhora faz o quê?”
“Sou professora…”
“De quê?”
“De portuguĂŞs…”
…e ele inferiu que, alĂ©m de garrafas pet, eu devia ter uns livros.
Fiquei de arranjar-lhe alguns, mas minha especialidade nĂŁo Ă© histĂłria. De todo modo, talvez eu acerte no gosto de Gabriel.
NĂŁo fiquei sabendo se ele concorda que las chicas son libres. Parece que sim. Disso nĂŁo houve dĂşvida. Nem de que de ler Ă© mais interessante do que muita coisa.
O Gabriel saiu com um monte de garrafas que provavelmente valem pouco. Deve ter lido alguma coisa naquele dia. Tinha consciência de que se comunica bem. Me disse isso no meio da nossa conversa. É articulado, tem um vocabulário interessante e traduz algumas frases em castelhano. Por quanto tempo ele ainda sonhará com o mundo e suas outras possibilidades? Da próxima vez, vou entregar uns livros junto das garrafas. É com eles que o Gabriel aprende, mas não só. É com eles que o Gabriel cultiva seus desejos para o amanhã. Parte das coisas ele recicla; outra parte ele sabe aproveitar.