🔓 O acaso está dentro

De volta ao Rascunho, a cronista inicia o ano refletindo sobre a capacidade que o ser humano tem de inventar a própria vida por meio de narrativas
Ilustração: Juliano Soares
07/01/2022

Confiar no acaso tem sido a base do meu otimismo desde que entendi que nem todas as pessoas do mundo são otimistas (um daqueles momentos infantis quando percebemos que as outras pessoas levam vidas absolutamente diferentes das nossas em termos concretos e subjetivos).

Não saber se vai dar pé, mas confiar: quase um pleonasmo, pois só tenho necessidade de confiar se não sei. Ter certezas torna desnecessária a confiança e, nisso, as garantias são pontos de cegueira. Não investigo aquilo que já acredito conhecer. Deixo à parte: estático e à beira do esquecimento.

Ter certezas, portanto, não requer esforços, mas confiar é uma prática.

Só que para quem todo misticismo desperta suspeita, apostar no acaso soa como pensamento mágico ou jogo de azar. Minha natureza cerebral busca explicação mais palpável. Talvez a confiança no futuro não seja tanto um caso de esperar o melhor do porvir, mas caso de acreditar na possibilidade de mudar o passado. A vida é o que conto para mim mesma que a vida é. Socorro, psicanalistas, nesse pântano de palavras, mas já que o passado não é mais que uma narrativa — e toda narrativa tem versões — qualquer um pode olhar para trás e reorganizar as peças dos acontecimentos.

Penso que os eventos da vida são neutros e indiferentes. Um acidente, uma demissão, um novo contrato, um pé na bunda ou a morte de alguém, em si, não significam nada nem operam contra ou a nosso favor. Mas é humano revestir tudo com narrativas, e elas dizem que isso foi bom, aquilo foi ruim. Ser otimista não é muito mais do que uma exacerbada autoconfiança na própria capacidade de criar ficções agradáveis para explicar a própria vida. Posso ser demitida, mas o cérebro otimista vai me convencer de que foi melhor assim.

Graças a este cérebro, estou aqui. Ano passado escrevi crônicas no Rascunho mensalmente até que não escrevi mais. Ano passado (na verdade, nos últimos quatro anos) também escrevi crônicas quinzenais num grande jornal até que me dispensaram. Ano passado dei um seminário, uma oficina e um breve curso sobre crônicas, mas bastou o grande jornal me mandar embora para eu pensar talvez eu não tenha mais o que dizer, talvez meu tempo de cronista tenha acabado, talvez eu nunca tenha sido uma cronista de verdade, o que é crônica, afinal (a pergunta dos alunos ressoa na minha cabeça e encontra nada além de eco). Ano passado terminei o ano pedindo desculpas ao editor desta casa (alô, Rogério), mas dizendo me coloca ano que vem pra escrever a cada duas semanas.

Confiei que o acaso vai me trazer suficientes assuntos e suficientes palavras. Não tenho garantias, mas já fiz apostas piores.

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

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