🔓 Nó que bruxuleia e se apaga

O português Herberto Helder sempre estará ligado à palavra amor, para onde o cronista regressa atrás de algo capaz de acionar a engrenagem da criação
O poeta português Herberto Helder
24/03/2021

Editado pela Assirio & Alvim, o livro traz na capa a imagem do mar revolto, com uma grande pedra ao fundo. A ficha técnica informa o ano de publicação — 2004 — e justifica as marcas do tempo, que respingou seu amarelo sobre o cume das páginas. Por muito tempo, foi a única obra de poemas de Herberto Helder em minha biblioteca. Era como se valesse por todas.

Helder morreu no dia 23 de março de 2015, em Cascais, onde morava. Ontem, portanto, completaram-se seis anos. Tinha 84. Já naquela data, pensei em escrever sobre ele. Acabei decidindo aguardar um pouco. Como o poeta marcou sua vida pela discrição, talvez fizesse sentido esperar que as luzes intensas da efeméride da morte esmaecessem, para então acender meu solitário lampião.

Conheci seu trabalho há cerca de uma década e meia, a partir de Sobre o poema, texto no qual esbarrei numa navegação prosaica pela internet. “Um poema cresce inseguramente/ na confusão da carne/ sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto”, dizem os versos. A esplêndida violência, os bagos de uva, as folhas dormindo no silêncio. Tudo isso, observa Helder, é tomado pelo poema em seu regaço. Uma poesia que nasce das coisas do mundo e as colhe, “contra o tempo”. Que é também corpo vivo.

No prefácio de Ou o poema contínuo, o tal livro a que me refiro no primeiro parágrafo, o poeta faz uma espécie de introdução à própria obra. “Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta / do gosto, o entusiasmo do mundo”, e a enumeração aproxima o prosaico do sagrado, quebra fronteiras, desestrutura. “Falemos de casas, da morte. Casas são rosas/ para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança/ nos abandona para sempre”, prossegue ele. A passagem está marcada, à caneta, em meu exemplar.

Penso se livros como esse, poemas como esse, não são também casas para cheirar muito cedo, ou à noite. Quantas foram as vezes em que, sem inspiração para um conto ou uma crônica, ou mesmo para a vida, abri Ou o poema contínuo atrás da palavra capaz de acionar a engrenagem da criação. No intuito de causar algum movimento, estranheza. Morangos frescos, ainda que por vezes mofem já na boca.

Em belo obituário publicado na época da morte, a conterrânea Alexandra Lucas Coelho conta sobre as horas seguintes à notícia da morte do poeta. Ela caminhava até o Mercado da Ribeira para despachar o lixo. Estava atrasada para um trabalho, o mundo parecia o mesmo, o cotidiano aparentemente impávido, mas enquanto cumpria os passos “algo pousava como um depósito”. “Essa palavra era amor”, conclui.

Herberto sempre estará, igualmente para mim, ligado à palavra amor. Seja pela amorosa casa que me ofereceu tantas vezes em seu livro, seja pela lembrança dos primeiros afetos que acabaram por gerar a pequena Lia. “Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões / da madeira fria”, diz o poema que muitas vezes reli — o qual, não poderia na época imaginar, definiria o insólito amálgama, a caudalosa interseção entre pai e filha: uma semente se torna grão e o grão, embora constitua um outro, passa a viver também dentro de nós.

Em 2014, Herberto lançou seu último livro. A edição saiu apenas em Portugal, com determinação expressa de não haver nova tiragem. Esgotou-se em poucos dias, mas consegui garantir meu exemplar graças à internet. Na obra, ele trata de filhos, palavras, poemas. E da morte que viria a colhê-lo logo depois. “A morte faz do teu corpo um nó que bruxuleia e se apaga,/ e tu olhas entre as coisas pequenas/ e para onde olhas é essa parte alumiada toda”. Por um segundo, nada mais.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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