Há pouco material literário mais atual do que aquele escrito pelo falecido jornalista Sérgio Porto sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, no Festival de Besteira que Assola o País, o Febeapá. Lamentavelmente, não é qualquer exagero pensar na aplicabilidade das pequenas pérolas de sarcasmo de Stanislaw como sendo plausíveis do cotidiano de um grupo de brasileiros que, por exemplo, se alimenta de informação falsa através do grupo de mensagens do celular e cujo administrador ou administradora acreditou que em 2019 o país seria livre de vez da corrupção.
Vejo a seguinte notícia no Febeapá:
Foi então que estreou no Teatro Municipal de São Paulo a peça clássica Electra, tendo comparecido ao local alguns agentes do DOPS para prender Sófocles, autor da peça e acusado de subversão, mas já falecido em 406 a.C.
A inteligência e o sarcasmo combinados de Sérgio Porto foram escritos exatamente para provocar o riso, mas também escancarar a frágil mente burguesa e/ ou simpatizante da ditadura brasileira e sua opressão. Nesse caso, engraçadíssimo, ainda fica exposta uma bagagem de leitura, ou completa ausência dela, de quem lê a tirinha.
Claro, a comédia e o bom humor finos têm a serventia de explorar temas sérios, sórdidos e polêmicos através da inteligência característica da farsa. Rir do total absurdo por ser precisamente algo despropositado.
A graça vai permeando hipóteses que, se lidas repetidas vezes por alguns tipos, começam a parecer verdades ou probabilidades. O espetáculo do absurdo parece começar a fazer sentido e, pior, a tornar-se razoável.
Nesse mesmo volume de Stanislaw Ponte Preta, o título chamativo estabelecendo que ninguém levantará a saia da mulher mineira, uma referência ao uso liberado da minissaia no Rio de Janeiro. A genialidade do título é tão rica quanto sua ambiguidade. Pobres mulheres mineiras, protegidas pelo então, segundo o livro, deputado estadual Lourival Pereira da Silva, um homem tão homem que decide pelas mulheres.
A título de curiosidade cronológica, vou deixar registrado ao leitor que essas tirinhas de Sérgio Porto foram publicadas nos anos 1960. Pois, na semana passada, eu que estava no aeroporto indo para Lisboa, comprei a revista The New Yorker e lá me deparo com uma matéria digna do Febeapá. Na seção The Talk of Town, a jornalista Margaret Talbot comentava sobre o retrocesso da, veja, “nova” lei do Texas que proíbe o aborto depois de seis semanas de gestação, não abrindo qualquer exceção para gravidez em caso de estupro.
A coisa vai ficando cada vez mais parecida com um texto de Stanislaw Ponte Preta quando entendemos que um dos argumentos do governador daquele estado americano para a aprovação da tal lei, é exatamente o plano dele em eliminar todo e qualquer tipo de estupro.
Ou seja, não será permitido aborto por estupro porque no mundo do governador do Texas não haverá mais estupro: ele proibirá que isso aconteça. Coitadas de nós mulheres, nas mãos de quem levanta nossas saias sem ser convidado, dentro ou fora de casa. Porque sim, quem duvida, existe um convite para ver nosso mundo de perto.
A ironia do sarcasmo de Sérgio Porto – somada ao retrocesso no Texas – é que, em países como o Brasil, existe uma mescla perigosa dos dois temas. Há mulheres que confundem proteção com autoridade masculina, como se fossem os homens a nos permitir ou não que nossas saias sejam levantadas, em comprimento ou em roda. E a grande tragédia é que continuam esses mesmos homens a não terem vergonha: não nos escutam e nem nos representam nas leis que afetam nossos corpos. Nossa ocupação em postos decisivos vem chegando, mas demora.
Enquanto isso, no Texas ou em Minas, a moça rica some uns dias para operar de pedra nos rins. A pobre morre com uma agulha dentro dela. A corda sempre arrebentando, você sabe. E ainda tem o problema do pão. Lembrar de comer só a casca, quando for possível comprar comida. O miolo, já sabe, vai para o meio das pernas estancar aquele filho que não quisemos ter.