No dia em que se publica esta crĂ´nica, completo trinta e seis anos. É meu segundo aniversário pandĂŞmico, a situação geral sĂł piorou, mas, de alguma forma, este aniversário está mais alegre que o anterior, e isso me causa iguais medidas de alĂvio e vergonha. Nesses tempos tĂŁo tristes, ando meio constrangida de ficar feliz. Dá um certo medo de, com a minha porçãozinha de felicidade, ofender alguĂ©m que esteja de luto ou desesperado, e há muitas pessoas de luto e desesperadas.
Um pouco vem do respeito Ă tragĂ©dia coletiva. No dia em que encerrei meu doutorado, minha mĂŁe ligou para dar parabĂ©ns e dizer que tinha na geladeira uma espumante, que ela pensava que tomarĂamos numa praça para comemorar, mas que naquele momento nĂŁo tinha clima e era melhor deixarmos para depois. Aquele momento era o da vigĂŞncia da bandeira preta no Rio Grande do Sul, vĂ©spera do colapso do sistema de saĂşde. A ideia de ser feliz numa praça, de estourar uma espumante talvez debaixo da janela de alguĂ©m que estava esperando notĂcias de uma UTI, era realmente impensável. Deixamos para depois. Passaram-se mais de quatro meses, e ainda nĂŁo tomamos aquela espumante.
Mas de junho passado até agora, aprendemos protocolos de cuidado que me deram a segurança de estar com pessoas recentemente. Estive num piquenique no jardim botânico, estive na casa de uma amiga onde nos posicionamentos estrategicamente nas correntes de ar (dez graus de temperatura e a gente se esforçando para encanar o vento, esse é o valor de uma amizade), e estive entre três pessoas no amplo terraço de uma amiga, na noite em que mais dei risadas desde o dia em que tudo mudou.
Estávamos felizes de estar juntas, e absolutamente nada parecia normal (as máscaras, a logĂstica da comida separada, o álcool em gel onipresente), mas aquela foi a felicidade possĂvel. Em algum momento, uma janela acima de nĂłs foi fechada num estrondo. A primeira coisa que eu pensei: que vergonha de estar rindo nesse contexto sanitário, polĂtico e social. Nem me passou pela cabeça que o vizinho podia apenas estar vendo um filme ou sentindo frio (aquela tambĂ©m era uma noite gelada), a primeira coisa que eu pensei foi que a gente provavelmente nĂŁo deveria se dar o direito de gargalhar em pĂşblico neste ano de 2021.
Mas entĂŁo eu olhei para o lado, para a minha amiga que eu amo profundamente e que, há pouco tempo, perdeu o pai, e ela estava rindo alto de alguma bobagem que eu nem tinha escutado, e eu pensei que se a gente nĂŁo puder salvar o riso, a gente nĂŁo vai poder salvar mais nada. Havia uma melancolia subjacente a todo aquele encontro — como Ă© possĂvel encontrar alguĂ©m que está de luto e nĂŁo dar um abraço? —, mas tambĂ©m havia a afirmação da vida, a teimosia da vida, o incontrolável da vida que a gente tenta segurar mas que escapa pelo canto da boca numa risada mais alta do que gostarĂamos.
Momentos depois da janela fechada, veio o barulho de um chuveiro elétrico: o estrondo tinha sido alguém se preparando para tomar banho. Mesmo agarrada à nova crença de que é preciso se permitir criar espaços alegres em meio à catástrofe, fiquei aliviada. Então era só um banho. Acho que é nessa corda-bamba que andaremos pelos próximos meses, buscando frestas de felicidade que respeitem, mas atravessem, a nossa imensa tristeza compartilhada.