A criança morreu. Foi tudo o que me disseram. Eu devia ter uns 4 ou 5 anos. Meu primeiro contato com a morte foi seco, sem introdução, sem colo, sem aviso prévio. Desde então, tenho essa noção muito clara de que acabamos de uma hora para outra.
Talvez por isso, a balada Der Erlkönig, do emo do Goethe, tenha tido um impacto tão grande sobre mim.
O pai se desespera; ele cavalga velozmente,
Ele segura nos braços a criança aos prantos,
Chega Ă fazenda com grande dificuldade;
em seus braços a criança estava morta.
A morte mais recente nĂŁo foi menos traumática: “Estou morrendo, anota aĂ”.
A consciĂŞncia da morte nĂŁo me desespera, apenas me apressa.
Não se enganem com o tema. Mesmo em meus quase 50, com rugas, celulite e cabelos brancos, me sinto tomada de um desejo quase imoral de vida, um desejo que anule a morte. Não viver a inércia aprendida. Não ser vencida pelo cansaço que, sim, existe.
Existem muitas mortes. Eu vivi, atĂ© agora, trĂŞs tipos. A morte real, concreta, fĂsica de alguĂ©m. A morte metafĂłrica de outro, quando aquela pessoa ou aquela situação finalmente acabou. E, a minha morte metafĂłrica, quando o peso de uma ruptura nĂŁo me deixa alternativa a nĂŁo ser matar um pedaço de mim, para que outro possa nascer. No fundo, bem no fundo, eu sou uma otimista.
Desses três tipos, já passaram muitas mortes por mim. Passar me parece um verbo pequeno. Dilaceraram. Rasgaram. Atravessaram. Isso. Desses três tipos, muitas mortes já me atravessaram.
Minhas fases de luto das mortes metafĂłricas sĂŁo estranhas. Começam antes da morte. EntĂŁo, em uma separação difĂcil, por exemplo, eu me enluto antes do tĂ©rmino e levo o prazo, amplio o meu limite atĂ© o inimaginável. E sĂł entĂŁo, rompo. Para o olhar externo, pode parecer que me recupero rápido, o que nĂŁo Ă© verdade. Sou lenta. Sofro. Sofro lerdamente mas começo antes do mensurável, entĂŁo esse tempo – qual tempo nĂŁo Ă© pessoal? – se permite existir plenamente.
Minhas fases de luto das mortes concretas são mancas. Em nenhuma delas cheguei à aceitação. Algumas, inclusive, ainda estou na fase da raiva. E jamais negociei, considero um desrespeito com o falecido.
O primeiro texto que eu publiquei na vida foi sobre a morte. Foi nos Cadernos de psicanálise, da Sociedade de Psicologia ClĂnica, do Instituto de Psicanálise do Rio de Janeiro, ano 3, nĂşmero 4, maio de 1984. Pela data, vocĂŞs podem ver que Ă© um tema que me acompanha desde muito nova. O texto em si Ă© bobo e tem como Ăşnico mĂ©rito ter sido escrito por uma menina de 12 anos de idade.
Como acontece com aqueles que têm sorte, apanhei muito de lá pra cá e, com a vida, estreitei a minha relação com a morte. Relação que espero manter distante e infrequente.
Estamos vivendo um perĂodo em que muitos de nĂłs estĂŁo sendo obrigados a conviver com a morte por conta de uma pandemia terrĂvel, agravada pela má administração brasileira.
Vivemos num paĂs que usa vacina como cabo de guerra polĂtico, que tira impostos sobre armas e os coloca em cilindros de oxigĂŞnio. Um paĂs cujo lĂder propaga falsos tratamentos e desdĂ©m polĂticas pĂşblicas de contenção da doença. Um paĂs que nĂŁo respeita sua população.
Essa morte pandêmica, fora de controle, pertence aos três tipos. Nos mata por dentro e por fora. Tal qual um soldado norte-americano deixado para trás em um dos incontáveis filmes hollywoodianos com esse tema, se quisermos sobreviver, precisamos parar, respirar, traçar um plano e reagir.
O presidente se engana. Ele Ă© coveiro, sim. E dos mais competentes.
Basta de carregar esse luto nos braços.