Conviver com filho pequeno é estar permanentemente diante de um espelho de dupla face. Se uma delas aponta para o futuro, tenta projetar gostos, escolhas, destino, profissão, a outra tem função retrovisor. Em pequenos gestos reconhecidos, somos transportados para a nossa própria infância. Uma máquina do tempo sem engrenagens visíveis.
Lia voltou às aulas na semana passada. Nos derradeiros dias de férias, nem mesmo as águas transparentes da Praia Azeda, em Búzios, foram capazes de solapar a pergunta insistente:
— Pípi, quando vou poder ver meu material da escola?
Ela se referia aos livros, cadernos e apetrechos que a mãe, no Rio, tratara de comprar. A lista obrigatória para a estreia na primeira série.
Os olhos ansiosos da menina de seis anos refletiam os do garoto que o pai dela um dia foi. Me vi caminhando de mãos dadas com meu velho pela Rua Carvalho de Souza, contando os minutos até chegarmos à Casa Baptista.
Era lá que, ano após ano, cumpríamos a tarefa de riscar os itens da lista preparada pelo Colégio Nossa Senhora da Piedade. Com três filhos em idade escolar, o pai tinha conta na papelaria.
Eu sempre fazia questão de estar presente. Opinar na escolha do lápis, da canetinha, da borracha, do estojo. Experimentar a alegria que é abrir, pela primeira vez, o livro de Português, Matemática ou Estudos Sociais.
Juliana, a mãe de Lia, também fazia a compra anual em Madureira. Moradora de Engenheiro Leal, localidade encravada nas beiradas de Cascadura, se deslocava com os pais até o bairro vizinho para não perder o que chama ainda hoje de “momento mágico”.
É curiosa, a vida. Por muito tempo, a memória desse acontecimento tão especial na infância se manteve soterrada. Coberta pelas efemérides que as fotos costumam registrar, por questões de trabalho ou família, pelo cotidiano que, em sua monótona espiral, tira o verniz das coisas.
Então percebo a cintilação no olhar de Lia e tudo é subitamente restaurado. Bastam alguns segundos.
Filho é mesmo um cavalo-de-pau na trajetória da gente. Num pequeno ato, restitui o espanto. As letras que, juntas, formam uma palavra. O sabor da fruta desconhecida. O primeiro toque no corpo gelatinoso e translúcido de uma água-viva colhida no mar.
— Pípi, quando vou poder ver meu material da escola? — a pergunta ainda ecoa.
— Amanhã, Lia.
Esse amanhã que traz o ontem, o anteontem, quarenta anos atrás. Que comprime o tempo, fazendo dele uma coisa só.