🔓 Mãe — Um tríptico

Quando a perda une três autores e a imagem da mulher feliz e altiva se refaz nos pequenos afetos da neta
Ilustração: Thiago Lucas
08/09/2021

1.
O café espresso acabara de ser servido pela atendente da Kopenhagen quanto o telefone tocou. Do outro lado da linha, Flávia, a irmã caçula. Não me recordo com exatidão da hora que o celular marcava naquele 23 de dezembro de 2016. De todo o resto, sim. Eu, minha ex-companheira Juliana e Lia, que mal completara um ano, aguardávamos o embarque no aeroporto do Recife. Após alguns dias de férias na praia, voltávamos ao Rio para o Natal, o primeiro de Lia com avó paterna.

Flávia estava aflita. Desde a manhã, tentava contato com nossa mãe, que fora à Praça Sáenz Peña trocar um presente. Havia a notícia de um atropelamento por lá.

“Onde você viu isso?”, perguntei, sem gravidade. Ela respondeu que soubera alguns minutos antes, numa página dessas de alerta no Facebook. E que a pessoa não tinha identificação ainda.

Tentei tranquilizá-la, lembrando que nem sempre a mãe atendia ao celular. “Ela é desligada, de repente perdeu a hora em meio às compras”, disse. “Vamos esperar um pouco. Se não der retorno, você liga para a delegacia do bairro. Não tenho muito como ajudar daqui porque embarco em alguns minutos.”

Desliguei o telefone, paguei a café. Juliana perguntou o que acontecera. Expliquei resumidamente. Do alto-falante, a voz convocava os passageiros do voo entre os aeroportos de Guararapes e Santos Dumont. Recolhemos as malas de mão e começamos a nos movimentar rumo à baia de embarque. Então o celular, novamente. Agora, o nome que piscava na tela era o da Lilian, nossa outra irmã.

“Marcelo…”

O choro afogava as palavras, esticava as reticências. Minha mãe, o atropelamento na Sáenz Peña, bastou ligar os pontos. Lia não passaria mais o Natal com a avó.

2.
No livro Mãe, recém-editado no Brasil, o jornalista e escritor português Hugo Gonçalves narra a viagem geográfica e memorialística que iniciou após receber, às vésperas de completar 40 anos, o testamento do avô materno. Hugo perdera Rosa Maria ainda menino, como conta logo na primeira das 182 páginas embebidas de dor, beleza e melancolia.

O câncer venceu-a rapidamente. No imaginário do garoto, Luke Skywalker, Thor, com seu martelo, ou o Homem-Aranha talvez pudessem deter a doença. Seu irmão, um pouco mais velho, fazia promessas enquanto jogava Pac-Man: “Se passar deste nível, a mãe não morre”. E no entanto.

O exíguo período de convivência — foram apenas oito anos — abre espaço para muitos “talvez” ao longo do livro. Como adivinhar o que os outros foram num tempo que já não existe? Como saber o que alguém que já partiu faria em tal situação? Como guardar a voz de um morto tão longínquo?

Em Tabu da morte, o antropólogo José Carlos Rodrigues explica que a consciência não consegue pensar o morto como morto, e assim não pode se furtar a lhe atribuir uma certa “vida”.

Essa “vida” que Hugo confere à mãe soma as parcas memórias de infância a descrições do pai, dos tios, da avó. É um mosaico embaçado. “Hoje não tenho um só objeto que ela tivesse tocado”, diz.

É também da morte materna que trata Lili novela de um luto. Lançado quase em paralelo ao texto do autor luso, Noemi Jaffe relata, no livro, seus primeiros dias sob o impacto da perda.

Lili viveu até os 93 anos. O apreço por joias baratas e lencinhos de papel, o hábito de usar a palavra “doce”, manias, costumes, tudo isso está inventariado pela filha no sucinto volume. O longo convívio cravou fundo os gestos, que após a morte ganham novo verniz. Noemi menciona uma espécie de “tato”. Sob o efeito da morte, as coisas parecem “mais pegáveis”. “Minha mãe se tornou um roçar”, resume.

Rosa Maria, 32 anos. Lili, quase centenária. Duas mães tão distintas, duas histórias igualmente díspares. Duas dores. Porque uma dor não ensina nada sobre outra dor. Cada qual tem sua própria escuridão.

3.
Ao pousar no Aeroporto Santos Dumont, após três horas e meia de viagem em completo silêncio, ficou claro para mim que as estrelas não seriam retiradas, ou a lua empacotada, ou o oceano esvaziado, porque minha mãe morreu. Os versos do poema de W. H. Auden soavam mais distantes à medida que o mundo se impunha. Apurar quem, em meio à família, teria a coragem de reconhecer um corpo esmagado pela trombada do ônibus, organizar o velório, avisar as pessoas do enterro em plena véspera do Natal.

“A vida continua, claro, mas agora com a morte, com a morte dela, e não apesar ou além disso”, observa Noemi. Seja Lili, Rosa Maria ou Margarida, minha mãe.

É curioso pensar que, ao longo de seus 79 anos, ela evitou mencionar a palavra “câncer” — dizia “aquela doença”, talvez no afã de afastá-la. Mas nunca houve interdito para “atropelamento”. Este que levou sua filha Sandra, quebrou as costelas da mais velha Mary, que poria um ponto final na própria existência.

Assim como Hugo, não pude ver o corpo que autentica a morte. Não havia condições, dado o estado dos órgãos. Velamos um caixão fechado.

Por insistência minha, mantivemos a ceia marcada para a casa da Flávia, no dia 24. Distribuímos os presentes que a mãe havia comprado para os filhos e netos. Ela adorava o Natal.

Se a dor pode ser solipsista e egocêntrica, como sublinha Hugo, a minha, particular, é solidária. Não me machuca tanto o impedimento de estar com minha mãe por mais alguns anos, de festejar seus oitenta, e sim o tempo que ela não teve com a neta. A impossibilidade de acompanhar o desenvolvimento da fala, a troca de dentes, as primeiras palavras escritas. De procurar as conexões que tecem o fio capaz de nos sustentar diante do abismo.

Nos últimos dias daquelas férias no Nordeste, publiquei uma foto de Lia com seu maiô, toda-toda, sentada na areia, rodeada de baldes, moldes e pás. Minha mãe logo me mandou uma mensagem falando que a netinha dela gostava de praia, que nem a avó. Disse ainda que, quando menina, saía de Madureira com as primas para ir até a então desértica Barra, na boleia de um caminhão. Prometeu contar essa história na noite da ceia.

Em dada passagem de seu livro, Noemi pondera que se o morto deixa parte dele com quem fica, é preciso entender que também leva consigo uma parte nossa. Não consegui ainda definir que parte minha está lá, com a mãe. Há breves vislumbres da que ficou. Mas é Lia, que mal a conheceu, quem traz os ecos mais fortes da avó. No gosto pelo cor-de-rosa em qualquer tom, por ornamentos e roupas espalhafatosas, pelas coisas brilhantes que o pai costuma repelir.

Até hoje, toda vez que tomo um café espresso na Kopenhagen, o dia 23 de dezembro de 2016 retorna. Posso ouvir, ao longe, o toque do celular, o som grave da chamada de embarque para um voo que nunca chegou, nem chegará. Mas a imagem da mãe — feliz, altiva — se refaz nesses pequenos afetos da minha filha. Como se a morte revelasse seu paradoxo: ser uma falta dentro da presença, uma bolha no interior do cristal; uma afirmação da vida, por fim.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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