(26/11/20)
Eu era pequena. Filha do meio de cinco irmãs. Os quase 1,80m e a voz grave de agora, às vezes me fazem esquecer disto: fui pequena e tive vontade de passar o dia com a mãe. Queria muito uma mãe para trançar meus cabelos crespos, mandar-me para o banho, lembrar a hora da lição de casa, rir das minhas meninices. Mas por um tempo, só tinha a avó para administrar os cuidados essenciais enquanto a mãe precisava ocupar-se da casa de outros. Dos filhos de outras.
Num dia sem aula, aconteceu de poder trabalhar com a mãe na casa da Dona Sara. Na minha idade e no círculo de amizades da família, nenhum nome terminava com “h”. Só agora penso que ela deveria se chamar “Senhora Sarah”.
Para chegar a casa dela, dois ônibus de final a final, muitas curvas, um dramin, um tanto de horas de um tempo que eu nem sabia contar, prédios, carros, gente de terno e gravata, mais alguns passos, elevador, porteiro, uma casa em cima da outra, atualização das recomendações: “Não mexe em nada ‘pelamordedeus’! Não aceita nada! Não fica olhando quando eles estiverem comendo”.
Um café rápido na cozinha e a mãe começa a limpar. Eu fico quietinha, sentada num canto, olhando com cuidado, com medo de o olhar derrubar qualquer coisa. Passa o tempo. O almoço passa. A gente come. A mãe continua. Recebo um pano de prato para secar talheres e plásticos. “Deusolivre quebrar alguma coisa!” Enquanto seco, lembro dos versos que decorei na escola, sem nunca poder declamá-los:
Sou ainda pequenina
mas alguma coisa faço
Pego a minha vassourinha
e da sala varro um pedaço
E fica limpa? Talvez!
Mas parece que depois
a mamãe varre tudo outra vez.
Numa busca rápida, não localizei a fonte do poema. Estaria em algum livro didático? Seria de autoria da minha professora? Eu não sei. Lembro-me que ela havia prometido o palco da festa do Dia das Mães para quem decorasse os versos. Eu queria muito que a avó se misturasse à multidão para me ouvir rimando para ela. A mãe não poderia deixar Dona Sara sem assistência, só por causa de uma festinha de escola. Eu treinei bastante.
Chegou o dia do teste e a minha vez. Comecei: “Sou ainda pequenina, mas alguma coisa faço”. Todos riram. Até a professora riu. Menos eu. Mandou-me sentar: “Você é muito alta pra isso!”. Riram mais um pouco. Foi escolhida a primeira da fila. A mais baixinha e delicada. Passaram-se décadas e os versos saltam ligeiros para a ponta da língua.
Tudo seco. Tarefa terminada. Um convite: entrar na sala de estudo. Dona Sara aponta o relógio cuco: “Olha o que vai acontecer”. Olho, mas meus olhos escapam para a estante ao lado. Cu-co! Quantos livros! Cu-co! Um monte de livros vermelhos! Cu-co! Ela é professora! Cu-co! Será que já leu todos? Cu-co! Por que nunca deu nenhum destes para a mãe? Cu-co! Ela diz que é uma enciclopédia. Cu-co! Que chama Barsa. Cu-co! Que nela tem tudo. Cu-co! Que só não me deixa pegar, para não estragar! Cu-co! O relógio já parou faz tempo. Eu segui imaginando quantos passarinhos cantavam naquelas páginas.
Passei anos desejando que a Barsa ficasse velha logo. Queria que ela chegasse em nossa casa nas sacolas que a mãe trazia com doações da Dona Sara. Doações que sempre serviam para alguém: roupas e sapatos usados, livros do professor, vasilhas plásticas. Os anos passaram. O sacrifício da mãe, garantiu a mim e minhas irmãs, trocarmos o pano de limpeza pela caneta e computador. Frequentamos escolas, universidades. Eu me juntei aos que leem, escrevem, (trans)formam leitores e leitoras. Ocupo alguns espaços, como esta coluna, falando das bibliotecas comunitárias e do nosso ativismo para a construção do Brasil que lê.
Outro dia (antes da quarentena da Covid-19), durante uma roda de leitura no quintal da biblioteca, avistamos um táxi de luxo estacionado no portão. Dele desceu uma senhora idosa, acompanhada do motorista com uma caixa aparentemente pesada. Demos boa tarde, convidamos para entrar, oferecemos água. Perguntamos se gostariam de conhecer a biblioteca. Disse não ter muito tempo. Seria breve. Estava de passagem, visitando uma prima numa casa de repouso na região. Tinha visto uma reportagem na TV sobre jovens da periferia que gostam de ler e que criaram uma biblioteca. Então, aproveitou a visita à familiar para fazer uma doação: “Vocês criaram uma biblioteca. Isso é lindo, importante. Tinha uns livros parados lá em casa, trouxe para vocês”.
Com apoio do motorista, a caixa semiaberta se escancara e expõe as capas vermelhas que eu reconheceria a distância. Era ela! Depois do Google, do Bing, do Yahoo, da Wikipedia, do… chegava a sonhada enciclopédia Barsa. E a senhora continua: “Só peço um favor: cuidem bem desses livros. Estão há anos na minha família. Quero que tenham um bom destino”.
Meus olhos me traem. Fogem da Barsa. Percorrem as estantes da nossa pequena biblioteca. Nos expositores vejo Conceição Evaristo, Ricardo Aleixo, Clarice Lispector, Julián Fuks, Cidinha da Silva, Graciliano Ramos, Ana Maria Gonçalves, Ailton Krenak, Italo Calvino, Jarid Arraes, Geovani Martins, Aline Bei, Saramago, Mel Duarte, Luiz Cuti, Chimamanda Ngozi Adichie, Sérgio Ballouk, Kiusam Oliveira, Pablo Neruda, Teresa Cárdenas, Olívio Jekupé, bell hooks e outros e outras. O silêncio é interrompido por um “tudo bem? Vocês vão cuidar bem da minha Barsa?”.
Estamos em uma Área de Proteção Ambiental (APA Bororé Colônia). Um pica-pau chega ao pé de açaí de juçara desviando a atenção, diluindo a tensão. Rimos. Alguns celulares registram o voo. Uma das adolescentes, mediadora de leitura, se adianta: “Muito obrigada pelo interesse em contribuir com nossa biblioteca comunitária. Como a senhora pode ver, nosso espaço é pequeno e não cabem todos os livros que chegam. Precisamos escolher. Optamos por fazer desta, uma biblioteca literária, garantindo a maior diversidade de autoria possível: clássicos, contemporâneos, literatura negra, indígena, periférica, nacional, internacional, romance, crônica, poesia. Tudo para crianças, jovens e adultos. Quando começamos, recebíamos enciclopédias, mas com no máximo cinco anos de lançamento, pois as informações se defasam rápido. Nós até poderíamos receber sua doação, mas dificilmente conseguiremos cuidar desses livros com o cuidado que a senhora espera, pois não temos muito espaço e não há muita procura por este tipo de livro”. Com olhos brilhantes fui ouvindo a explicação bem articulada da garota, resultado de uma construção coletiva.
Está chegando o final do ano e com ele, as faxinas. Fiquei com vontade de compartilhar essas lembranças e aprendizagens. Nas bibliotecas comunitárias temos estudado o desenvolvimento dos nossos acervos e efetuado compras coletivas, visando garantir qualidade e atendimento aos gostos dos nossos interagentes. Se você tem livros que já leu, que se encontram em bom estado e que gostaria muito que outras pessoas lessem, sugiro: não espera muito, não.