Uma esmagadora parcela dos escritores que conheço luta desesperadamente para obter sucesso. A compreensão do substantivo pode até variar conforme a posição do autor nos relatórios de venda das editoras, a idade, o nicho que insere sua obra, o nicho que gostaria de ver inserida sua obra ou, em nossos tempos, a percepção das redes sociais. Tem os que buscam ser abraçados por editoras de prestígio; os abraçados que, insatisfeitos, desejam romper a barreira do idioma e, tal como Pinky e o Cérebro, dominar o mundo; os que esperam consolo na Posteridade; os modestos, que sonham apenas viver materialmente do seu trabalho e, desse modo, se tornam pau-para-toda-obra, vivendo em agências publicitárias, redações de portais, vestindo-se de ghost-writers, tradutores etc.; bem como os que sonham ser cult na esperança de obter um pouco mais de sexo. E tem a encantadora Emily Dickinson do Sertão.
Esses dias, ela compartilhou comigo uma grande preocupação. Por mais que evitasse os holofotes, um professor de literatura em Montevidéu estava decidido a conhecê-la pessoalmente. Emily caíra na besteira de enviar seis poeminhas seus para a revista Acrobata, que ela considerava uma das mais interessantes do gênero. Para isso, adotou um pseudônimo e tomou o cuidado de abrir uma conta de e-mail exclusiva para seu alter ego. Os textos saíram numa edição do começo de 2018. Cinco meses depois, ela recebeu a primeira mensagem do professor, comentando poema a poema e falando um pouco de si. Minha amiga agradeceu com uma resposta tímida, mas deu oportunidade de desenvolverem um papo mais longo ao perguntar qual a sua poeta suicida preferida. Ele disse que era a Sexton. A partir daí, trocaram inúmeras correspondências. Emily amava suas mensagens. Às vezes, entre baforadas de cigarro e pequenos goles de licor, lhe enviava versos. Ficou surpresa quando soube da programação de viagem ao Brasil. Seu pseudônimo na Acrobata era Alberto Rivas. Ela jamais imaginou se encontrar com ninguém. Muito menos, um admirador uruguaio.
Embora eu admire Herberto Helder, Salinger e Dalton Trevisan tanto quanto Emily, não estamos no mesmo nível de reclusão pessoal. Sem nenhum estardalhaço, realizo noites de autógrafos de meus livros, aceito convites para falar a estudantes, dou entrevistas para programas de televisão e participo de festas e eventos literários.
Em minha percepção, ainda que os escritores cheguem ao topo do Olimpo em matéria de fama, suas “tietes” guardam um certo pudor em relação às de outras artes como o cinema e a música. Ao passear com João Silvério Trevisan nas ruas de São Paulo, beber cerveja com Paulo Lins, Marcelino Freire e Paulo Scott numa bodega do Rio, conversar com Noll num café de Porto Alegre ou almoçar com Sidney Rocha no Recife, nunca aconteceu de nenhum deles ser reconhecido, parado e solicitado a fazer uma selfie. Pode até ter acontecido, mas eu nunca presenciei. Também não me recordo de nenhuma perseguição por paparazzi.
Quando desembarquei na Cidade do México para a XIV Feira Internacional do Livro de Zócalo em 2014, eu não tinha expectativa de atrair grande público. Meu primeiro livro fora traduzido lá, mas a editora programara o lançamento para alguns dias depois em Querétaro, onde mantinha sua sede. Minha apresentação seria ao lado do poeta Ricardo Domeneck, também brasileiro, e contaria com a mediação de Carlos Lópes Márquez, tradutor e um dos organizadores da antologia Nado Libre. Narrativa brasileña contemporánea.
Cheguei na Feira de Zócalo em cima da hora, pois fui acompanhado pelo fotógrafo Lázaro Coutinho, que, justamente naquela fatídica tarde, resolvera visitar o Museu de Antropologia e, no trajeto de retorno ao hotel, pegáramos um baita congestionamento, o que me deixou nervoso. Havia muita gente transitando entre os estandes de venda, lanchonetes e espaços culturais. Dispuseram umas duzentas cadeiras para nossa plateia. Faltavam poucos minutos para começar e apenas duas fileiras estavam cheias. Numa passada de olhos, contei vinte pessoas. Ainda assim, mostravam-se dispersas e desatentas, como se aproveitassem a oferta das cadeiras para fazerem uma pausa nas compras ou esperarem o momento mais adequado para pegar o metrô. Pensei: nada muito diferente do Brasil.
O mestre de cerimônias se aproximou do microfone e fez nossa apresentação. Duas pessoas se levantaram na segunda fileira e saíram: dezoito. A primeira rodada de perguntas foi formulada. Tentei concentrar minha atenção nas respostas. Logo eu teria cumprido o meu dever e poderia relaxar com os amigos num bar próximo. Talvez risse daquela situação. Uma segunda rodada saiu do forno. Domeneck não decepcionou. Eu também não. Acabei me envolvendo com o debate e esquecendo o público. Quando pintou uma pausa, resolvi olhar para a frente e percebi que umas cem cadeiras estavam ocupadas.
Veio uma terceira safra de questões, todas instigantes e ligeiramente perigosas. Dessa vez, as respostas demandaram maior esforço e tempo. Estávamos nos saindo bem. Para terminar o trabalho, bastaria lermos trechos de nossos livros e o microfone seria aberto para livre manifestação do público. Era tudo o que eu temia. “Lá vem o louco da plateia”, eu pensei. “Vão protestar da política do governo, da alta taxa dos crimes, recitar versos horríveis e pueris, avacalhar o que estava tão bonito.” No entanto, me passaram uma rasteira. Eles comentaram nossas leituras, citaram autores brasileiros conhecidos e, sobretudo, demonstraram um vivo interesse pelo que estava sendo produzido no Brasil de então. Eu me senti envergonhado.
Quando descemos do palco, uma pequena multidão de jovens, que não conseguira encontrar assentos vazios nos duzentos lugares disponíveis, me cercou. Pediam autógrafos no prospecto da palestra, fotos, apertos de mãos e beijos. Não vi se com o Domeneck se passava o mesmo, mas fui obrigado a responder novas perguntas e a prestar informações sobre o lançamento do meu livro por mais de meia hora. Enquanto isso, Lázaro captava, registrava as imagens e comentava com meu editor, que aguardava pacientemente num canto, ser aquele meu “momento Lady Gaga”. À noite, no bar, entre jocoso e orgulhoso, eu afirmaria aos presentes: “Lady Gaga c’est moi”. Mesmo que, somente, por um par de horas.