Recebi uma pasta com anotações do Edu, meu pai biológico, a meu respeito. São entradas em um bloquinho. Vão até 1976. Comentários de um dramaturgo e psicólogo. Tudo em nome de Freud com pitadas de Winnicott aqui e ali. O que poderia ser uma janela para a minha história é, na verdade, uma prisão.
Foi outro psicanalista que me ensinou sobre a necessidade de diferenciar o que é nosso e o que é do outro. Esse, contemporâneo e muito competente. No meu círculo afetivo o seu sobrenome acabou se tornando um substantivo. Felipe Paganelli. Dizemos “faça um paganelli” quando queremos alertar para a necessidade de compreensão de que algo não pertence àquela pessoa.
Faço um paganelli e compreendo que as anotações não são de uma criança de no máximo 5 anos de idade mas de alguém enfrentando dificuldades que incluem uma criança de no máximo 5 anos de idade. E, assim, escapo da prisão e posso ver a janela.
Faço também um café.
Vejo da janela a moça que, no sinal fechado, equilibra e gira no ar bambolês em um efeito caleidoscópico. Todo intervalo de tempo do trânsito a rotina se repete. Quando os carros passam, ela faz carinho no cachorro que a acompanha, atento.
Em outra janela, um som avisa que há email. Sou idosa e ainda uso email. Decido ignorar. O cachorro dos bambolês é muito mais importante.
Faço um café. Mais um. E volto para a janela.
Eu vejo todo mundo sambando e a estrela caindo mas talvez Carolina tenha sido uma decisão acertada, afinal. Foi o Edu quem escolheu meu nome, por causa de Carolina Augusta Xavier de Novaes, grande amor e coautora de Machado de Assis. Espero que, quando eu morrer, deixe afetos importantes o suficiente para que os pensamentos idos e vividos sobrevivam.
Do outro lado da rua, uma pessoa pendurada do lado de fora do prédio lava janelas. Um ótimo exemplo de mais um trabalho que eu não poderia ter.
Prazos me mordem o calcanhar e a janela para a rua ganha um tom culpado e culposo.
O que eu quero mesmo é passear com a cachorra mas, resignada, começo a trabalhar. Uso dois monitores para dar conta de tanta janela. Janelas produtivas, capitalistas, eficientes e, como sempre, fundamentalmente desimportantes. Tudo aquilo que considero importante é inútil. Se é útil, não é importante.
Vontade imensa de pegar uma estrada. Não importa para onde, não. O bom é ir. Ir-indo-gerúndio até ter ido a algum lugar. E aí voltar.
Caetano, em francês, termina de assassinar a minha (pouca) determinação de trabalhar.
Dans mon île / On n’fait jamais rien / On se dore au soleil / Qui nous caresse / Et l’on paresse / Sans songer à demain
Na dúvida, pergunte a um baiano. Qualquer dúvida, qualquer assunto. Trabalhos, amores, viagens, vidas passadas presentes e futuras. Não importa a matriz religiosa, o oráculo é sempre baiano.
Aqui na minha ilha também brinca-se muito de Adão e Eva e é nesse tempo em pausa que penso. Abro outra janela e mando mensagem para o namorado. A conversa, também em janelas, pula entre assuntos, invadindo prédios e escapando de prisões.