Jessie Buckley é a atriz que faz o papel de Leda, em A filha perdida, do livro homônimo de Elena Ferrante e sobre o qual eu escrevi no Rascunho. É também Buckley a protagonista de um filme interessante, cujo anúncio vi por acaso dentro do metrô em Londres. O título é Men, a imagem do cartaz traz a atriz de frente para uma macieira e maçãs caídas pela grama. Pensei que, talvez, se associasse ao meu livro mais recente, Eva, por razões bíblicas e lógicas. Não estava muito equivocada.
Li sobre o filme antes de comprar os bilhetes. Terror, suspense, drama causados pelos homens da história. Um filme de terror onde os homens são os protagonistas de uma história onde subestimam a inteligência das mulheres. O que será que há de novo a ser dito? Achei que poderia valer a pena superar o medo desmedido que eu tenho de filmes de terror e me aventurar no cinema à tarde.
A ironia foi quando um amigo me disse que me acompanharia, já que àquela hora não teria ninguém na sala de cinema e eu precisaria de alguém pra não me sentir tão exposta. Achei aquela colocação descabida, mas, claro, identifiquei aí um dos problemas que persistem: nós, mulheres, ainda nos vemos em situações de desconforto dentro do nosso direito de estarmos sozinhas. Afinal, nunca persegui, nunca encarei com olhares de predadora um homem, assim como nunca sussurrei palavras eróticas enquanto ele passava e, também, nunca o segui em nenhum beco escuro.
O filme trata dessa desvantagem, essencialmente. Há simbologias interessantes, ainda que desgastadas. A mulher que se seduz pela floresta e seus elementos, só para se perder nela e sentir-se em perigo quando, ao longe, vê um homem também na mesma floresta. É recorrente o tema da perseguição e da vitimização da mulher, ainda que, inteligentemente, ela nunca se veja ou se comporte como tal.
A personagem, aliás, custa a acreditar no disparate dos comportamentos dos homens à volta. Ela se irrita, xinga, corre e se protege. Mas aí está: ela segue sempre em desvantagem, estruturalmente falando. A escolha do cenário para o filme é importante: uma casa na área rural da Inglaterra. Local de extrema beleza, uma casa luxuosa e de campo, com confortos, silêncios e tranquilidade propícios para que Harper, a protagonista, faça o que se propôs a fazer: tentar se recuperar ou se apaziguar ao testemunhar o suicídio do marido.
O triunfo do filme está no que é normalizado, e muito menos na penúltima cena, quando os homens parem os outros homens dando uma ideia gráfica de perpetuação dos seus poderes e preconceitos. É uma cena terrível. Não só por ser grotesca, mas por ser grosseira, imunda, desnecessária e óbvia demais.
Porém, se conseguirmos retirar a bizarrice dessa parte específica, fica a naturalização dos comportamentos masculinos que tanto nos ofendem ou que tanto nos impedem de sair do lugar de inferioridade, vitimização ou desvantagem.
Quando a protagonista diz ao policial que ela vem sendo perseguida por um homem nu que tentou entrar na casa onde ela está hospedada, a descrença do guarda e a desimportância dada à reivindicação de Harper, ilustram a humilhação de milhões de mulheres que são vítimas de crimes como estupro e violência doméstica, e precisam lidar com a desconfiança das próprias autoridades que, supostamente, estariam ali para protegê-las.
Mais sutil, porém igualmente desgastante, são os comentários de homens, cujos papéis são feitos sempre pelo mesmo ator, que, ao notarem a frustração da personagem em não ser levada a sério pelo policial, comentam entre si que devem deixar para lá tal rompante até que ela se acalme.
Mansplaining, machismo, subestimação e intimidação são alguns dos termos que são férteis nesse filme, cuja macieira nos indica evas expulsas do paraíso por homens que cometeram a mesma suposta falha que elas. Toda estratégia de violação precisa de um bode expiatório, afinal.
Uma das imagens mais perturbadoras é a do suposto sem-teto que persegue a protagonista. Ele está sempre nu e, às vezes, simplesmente se coloca à frente de Harper. Essa oferta que nunca foi pedida, é uma presença invasiva, ofensiva e humilhante. Tal qual o olhar penetrante e insistente que uma mulher recebe de um homem num trem, num ônibus, na rua, no trabalho, num bar, numa loja. A autoconfiança masculina é mesmo impressionante.
Crucial é falar dos homens que se repetem, mas ainda mais fundamental, é ressaltar a gênese dessa violência no filme. O marido da protagonista que se suicida é um homem que ameaça a mulher constantemente. Ele avisa que tiraria a própria vida se ela fosse adiante com a ideia de deixá-lo.
O curioso é a humilhação dele em querer ficar com ela por laços tão fracos e frouxos. Como se ela resolvesse permanecer num relacionamento, não pelo amor, mas pelo medo das ameaças da outra parte. Argumento esse que é privilégio dos loucos ou desesperados. A manipulação desse marido passa à violência e à agressão claras quando ele, não só grita com ela, mas dá então um tapa no seu rosto, motivando Harper a expulsá-lo de casa.
A mulher carrega, portanto, as marcas da violência, mas na tentativa de se livrar do trauma, reencontra a misoginia disfarçada de normalidade. Depois dos ciclos quase intermináveis dos homens que geram outros homens passando adiante, como uma combinação genética ou herança, o machismo, Harper encontra, finalmente, a amiga que, fundamentalmente, aparece grávida.
Mas o que tanto querem esses homens quando perseguem Harper? Eu me lembro de morrer de medo dos cachorros que seguiam nosso Chevette marrom quando íamos para a fazenda dos parentes, em Guarani. Ao mesmo tempo, eu adorava ser a responsável por abrir as porteiras. Mas para abrir as porteiras, era preciso sair do carro e lidar com aqueles latidos insistentes. Um dia meu pai me disse que os cachorros só latiam porque eu fugia deles e que se eu parasse e olhasse para eles nos olhos, eles sairiam, literalmente, com os rabos entre as pernas.
A personagem do filme, eventualmente, aprende a fazer isso e os homens, como tais, morrem. Agora falta a cada uma de nós aprender também.