🔓 Há quem agradeça

Na precariedade e violência da escola pública, uma nesga de esperança surge num “simples” muito obrigado
Ilustração:  Amy Maitland
11/04/2023

Viver em uma sociedade violenta é extremamente cansativo. Assistir à tevê por algumas horas nos desanima de abrir a janela e pôr a cara para fora. O ódio é um veneno fluido e contagia; é aprendido com tanta facilidade quanto se aprende a andar ou a comer. A notícia da professora esfaqueada nos entristece, causa perplexidade e medo, e depois tudo o que se desdobra daí nos desafia: mais notícias, palpites, colunas, artigos, comentários, tudo destilando amor e ódio. A notícia sobre um adolescente armado que assassina uma professora e fere outras nos faz sentir uma angústia que demora dias a se dissipar. E apenas isso: se dissipa, mas fica na atmosfera. Nós respiramos essa violência até que ela nos pareça como o ar, esse de que precisamos para ficar vivos. As culpas e mistérios do jovem criminoso; as condições da professora idosa; a coragem compulsória das heroínas que, muito antes de serem heroínas, são personagens cotidianas com as quais todas nós, professoras, cruzamos nas nossas precárias salas de convivência escolar. Salas de convivência onde convivemos pouco, sempre envolvidas por reclamações, enormes dificuldades, uma exploração naturalizada, a ameaça constante da desumanização e o odor fixo de café ruim.

A escola não se parece com um sonho colorido. No Brasil, a escola pública é profundamente necessária, e é nela que estuda a maior fatia da população jovem, ou ao menos a parte da população jovem que ainda frequenta as salas de aula. O jogo do sucateamento e da precarização é desleal e é brutal. A mercantilização devora tudo, principalmente o que não deveria. A escola não é o espaço do sonho e do futuro; ela estertora, ronca como quem morre abatido, leva porrada todos os dias, junto com quem a carrega nos ombros, fazendo as vezes de professora, sim, mas de psicóloga, cantineira, segurança, catadora de piolho, ouvidora de reclamação de pais que não sabem seu papel no mundo e nesse jogo. O garoto entrou na escola com uma faca e matou uma professora. Lamentamos todos; mas alguns lamentam sentindo o bafo da morte no pescoço. Um conhecido assumiu, recentemente, aulas em uma escola do estado. Na primeira semana, pensou em nunca mais voltar. O que sentiu foi medo. Mas a profissão dele é professor. Não se lembra de ter aprendido sobre opressão e medo nos bancos universitários. Repensemos os currículos das licenciaturas: defesa pessoal, psiquiatria básica, detecção de mentira e ódio (já que nossas disciplinas vêm sendo mesmo reduzidas a pó). Nos jornais, a notícia sempre delicada sobre um grupo de pais que considera o Davi de Michelangelo pornografia. Com aquele bilau branco e frio? Afora o ridículo da situação, pensei que essas pessoas estão muito mal de pornografia. E de sensatez. Vamos então omitir estátuas e arte, a evitar conflito com essa gente. E a escola vai sendo reduzida a um espaço de silêncio, de medo, de repetição, de tacanhez. Nenhuma novidade.

A despeito de tudo isso, e mesmo que a sensação geral seja a de que a educação vai mal, mas a sociedade vai muito pior, há uma frase surpreendente que escuto toda quarta-feira à tarde. Isto não é ficção, leitor, leitora. De fato, ao terminar uma aula de Redação em uma escola pública da capital mineira, em uma turma que passa longe de ser um coro de anjos, mas que também se distancia enormemente de uma cena carcerária em dia de rebelião, escuto, três ou quatro vezes, uma frase impressionante, que recarrega parte das baterias que me mantêm mais ou menos firme no propósito de ensinar no Brasil: “obrigado pela aula, professora”. Sim, há quem a-gra-de-ça. E não de qualquer jeito. Eles e elas, de todas as cores, classes sociais e orientações sexuais, já bem adolescentes, com suas mochilas pesadas e surradas penduradas em um só ombro, passam pela porta ao sair, me olham nas pupilas e, com um sorriso discreto, dizem “obrigado pela aula, professora, até semana que vem”. Meus olhos marejam. É claro que eu disfarço, porque é preciso arrancar força e firmeza de algum lugar, em especial porque nossas aposentadorias vão sendo extintas e o único jeito é segurar o rojão, mas tenho certeza de que meus olhos brilham aquosos, enquanto meu coração consegue um breve intervalo para funcionar num sobressalto diferente — não no ritmo do medo, da frustração e daquela sensação que muita gente conhece quando nos sentimos desrespeitados, uma espécie de queimação que atordoa, mas da qual simplesmente não podemos fugir. Aquele “obrigado pela aula, professora” ressoa fundo e cala, emociona agudamente, e efemeramente. O que responder? Também não falaram sobre isso nos bancos universitários. “De nada” ou um aceno discreto de cabeça? Um desejo de dizer “eu é que agradeço”, mas nenhum de nós faz favor ali. Estou em serviço; eles estão em busca de algo parecido com um futuro, de algum modo confiam em mim e no que digo/faço. Mas… eu também miro um futuro. E esse futuro parece opaco para todos, de modos diferentes. O que cada um carrega na mochila? Nos olhares, algum sinal de ódio e desequilíbrio? Que planos têm para si e para nós? Quão surpreendentes podemos ser? Que males nos podemos impingir? Já houve algum caso de os professores metralharem a escola, matarem alunos e alunas a facadas, derramarem sangue e indignação? Ou simplesmente aprendemos a tornar tudo em câncer e atestados médicos?

Hoje talvez não seja um bom dia para escrever um texto sobre escolas, ódio e armas brancas ou uma crônica sobre fúria e salas de aula, notícias chocantes e a vida diária. Meu desejo era dizer que há quem agradeça. Talvez haja quem valorize nosso trabalho diário naquele cenário sem qualquer conforto, o que não redime governos e sociedade da enormidade da violência a que nos condenam diariamente ao alimentarem, com certo sarcasmo, a desvalorização da educação escolar e de seus profissionais comprometidos. Muito antes de assassinar, quando alguém despreza uma professora ou um professor, a exemplo do que fez recentemente uma importante e edificante MC riquíssima, está, afinal, contribuindo para esta merda toda. Somos meio descartáveis, elimináveis. Agora, grande artista, vá lá limpar o sangue no chão, sem sujar suas roupas de marca. Aprendemos a ser maltratadas com relativa facilidade: pela estrutura geral da escola (de sua arquitetura a seu mobiliário parco, dos banheiros sem papel à falta de tecnologias funcionais), os horários e turnos encavalados, a desautorização para estudar e se aperfeiçoar, pelos discursos midiáticos, por uma sociedade que adora dar palpites cheios de desinformação e arrogância. Mas há, afinal, o que interessa: nossa relação com estudantes que agradecem. E que voltam. Voltam com um chocolate nas mãos, mochilas pesadas de cadernos usados e os rostos cheios de curiosidades genuínas. Não há problema se nossos olhos marejarem, mas que seja por isso.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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