🔓 Há muitas variáveis no morar

Não entendo muito de arquitetura, mas tenho certeza de que a fotografia mostra um homem que vive dentro de uma rachadura
Morador de uma rachadura de viaduto em São Paulo. Foto: Reinaldo Canato | UOL
02/02/2021

Leio que, em São Paulo, há pessoas morando dentro de viadutos. Tive certa dificuldade em entender o que é o espaço dentro de um viaduto, mas a reportagem ajudou mostrando fotos de buracos, de alguns vãos onde se pode enfiar um colchão e um fogareiro e de uma espécie de galeria subterrânea onde cabem dezenas de famílias. Não entendo muito de arquitetura – tanto menos da arquitetura de viadutos – mas tenho certeza de que a primeira fotografia mostra um homem que vive dentro de uma rachadura. É um homem que deve sua moradia à baixa qualidade do concreto utilizado na obra.

Uma amiga tem me enviado fotos de casas de madeira pré-fabricadas. Ela e os irmãos têm o sonho de comprar uma casa para a mãe, que desde sempre vive de aluguel. Há muitas variáveis envolvidas na construção das casas de madeira: elas podem ter as paredes dupladas, os pisos de cerâmica, o banheiro de alvenaria, as vigas em madeira de lei. Ou não. O site informa que na Europa existem casas de madeira com mais de duzentos anos. Também informa que é necessário reaplicar o verniz regularmente.

O site não informa, mas é evidente, que os compradores precisam de um lugar para colocar a casa de madeira. Minha amiga e os irmãos já descartaram comprar um terreno em Porto Alegre, onde é muito caro. Eles talvez possam comprar um hectare em Maquiné, cidadezinha semirrural a uma hora e meia de viagem. A mãe deles gosta de cachorros, gosta de ter quintal. Seria necessário, porém, pensar num carro para manter a facilidade das visitas familiares. Há muitas variáveis envolvidas na compra de um carro, todas elas custam dinheiro.

Uma conhecida, jornalista e mãe solo, uma vez escreveu no Twitter um fio a respeito de como ela, que leva uma vida de classe média, não estava a muitos passos de distância de virar sem-teto. Bastaria uma grave crise financeira, um período de longo desemprego, dívidas acumuladas, um despejo e a impossibilidade de viajar até a cidade da família, que, de todos modos, também vive de aluguel e estaria sujeita, portanto, à mesma hipotética grave crise financeira. Ela seria salva pelos amigos, ela tem certeza, e então não seria sem-teto, mas moradora de favor no quarto sobressalente de alguém.

Um dos moradores das entranhas do viaduto de São Paulo é engraxate de um pessoal grã-fino, médicos de hospitais famosos. Os seguranças dos hospitais ficam de olho no buraco do viaduto, do outro lado da calçada, para garantir que ninguém roube as coisas do engraxate. Ele também tem a companhia de dois cachorros. Alguns dos seus clientes o têm ajudado desde o início da pandemia, quando o serviço diminuiu. Um deles já disse que, se ele quiser voltar para a casa dos pais num outro estado, banca a passagem. Ao falar desses arranjos, a reportagem usou o subtítulo: Coleção de amigos.

Mês que vem, vira o ciclo do contrato de aluguel do apartamento onde moro. O índice IGP-M do ano de 2020, utilizado para o cálculo de reajuste do valor do aluguel, ficou em quase 25%, quando no ano anterior tinha sido pouco mais de 6%. Eu pouco sabia a respeito do índice IGP-M até contemplar a possibilidade de subitamente me ver morando num lugar que não posso pagar. Há muitas variáveis envolvidas no índice IGP-M, e uma delas é o preço do milho no mercado exterior, o que me faz pensar que os gringos estão comendo pipoca enquanto avacalham meu aluguel.

“Em resumo, acho que sou uma boa locatária”, escrevi no e-mail que enviei à imobiliária depois de ressaltar minha pontualidade nos pagamentos, meu bom relacionamento com os vizinhos, meu eventual esforço de passar cera no parquê. A proprietária deve ter se convencido pelo meu apelo, porque chegamos a um acordo. Fiquei feliz de saber que posso manter a minha janela com uma vista que é apenas parcialmente bloqueada por outro prédio, que me permite observar um conjunto de casas antigas com telhados bonitos, o topo de umas quantas árvores nas quais os inverossímeis papagaios porto-alegrenses berram seus gritos, e de onde não se escuta o ruído da avenida duas quadras pros fundos, avenida que abriga um viaduto famoso da cidade, um viaduto que eu nunca antes observei de perto, e agora ainda menos, porque não quero descobrir nele rachaduras tão próximas.

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

Rascunho