Leio que, em SĂŁo Paulo, há pessoas morando dentro de viadutos. Tive certa dificuldade em entender o que Ă© o espaço dentro de um viaduto, mas a reportagem ajudou mostrando fotos de buracos, de alguns vĂŁos onde se pode enfiar um colchĂŁo e um fogareiro e de uma espĂ©cie de galeria subterrânea onde cabem dezenas de famĂlias. NĂŁo entendo muito de arquitetura – tanto menos da arquitetura de viadutos – mas tenho certeza de que a primeira fotografia mostra um homem que vive dentro de uma rachadura. É um homem que deve sua moradia Ă baixa qualidade do concreto utilizado na obra.
Uma amiga tem me enviado fotos de casas de madeira pré-fabricadas. Ela e os irmãos têm o sonho de comprar uma casa para a mãe, que desde sempre vive de aluguel. Há muitas variáveis envolvidas na construção das casas de madeira: elas podem ter as paredes dupladas, os pisos de cerâmica, o banheiro de alvenaria, as vigas em madeira de lei. Ou não. O site informa que na Europa existem casas de madeira com mais de duzentos anos. Também informa que é necessário reaplicar o verniz regularmente.
O site não informa, mas é evidente, que os compradores precisam de um lugar para colocar a casa de madeira. Minha amiga e os irmãos já descartaram comprar um terreno em Porto Alegre, onde é muito caro. Eles talvez possam comprar um hectare em Maquiné, cidadezinha semirrural a uma hora e meia de viagem. A mãe deles gosta de cachorros, gosta de ter quintal. Seria necessário, porém, pensar num carro para manter a facilidade das visitas familiares. Há muitas variáveis envolvidas na compra de um carro, todas elas custam dinheiro.
Uma conhecida, jornalista e mĂŁe solo, uma vez escreveu no Twitter um fio a respeito de como ela, que leva uma vida de classe mĂ©dia, nĂŁo estava a muitos passos de distância de virar sem-teto. Bastaria uma grave crise financeira, um perĂodo de longo desemprego, dĂvidas acumuladas, um despejo e a impossibilidade de viajar atĂ© a cidade da famĂlia, que, de todos modos, tambĂ©m vive de aluguel e estaria sujeita, portanto, Ă mesma hipotĂ©tica grave crise financeira. Ela seria salva pelos amigos, ela tem certeza, e entĂŁo nĂŁo seria sem-teto, mas moradora de favor no quarto sobressalente de alguĂ©m.
Um dos moradores das entranhas do viaduto de SĂŁo Paulo Ă© engraxate de um pessoal grĂŁ-fino, mĂ©dicos de hospitais famosos. Os seguranças dos hospitais ficam de olho no buraco do viaduto, do outro lado da calçada, para garantir que ninguĂ©m roube as coisas do engraxate. Ele tambĂ©m tem a companhia de dois cachorros. Alguns dos seus clientes o tĂŞm ajudado desde o inĂcio da pandemia, quando o serviço diminuiu. Um deles já disse que, se ele quiser voltar para a casa dos pais num outro estado, banca a passagem. Ao falar desses arranjos, a reportagem usou o subtĂtulo: Coleção de amigos.
MĂŞs que vem, vira o ciclo do contrato de aluguel do apartamento onde moro. O Ăndice IGP-M do ano de 2020, utilizado para o cálculo de reajuste do valor do aluguel, ficou em quase 25%, quando no ano anterior tinha sido pouco mais de 6%. Eu pouco sabia a respeito do Ăndice IGP-M atĂ© contemplar a possibilidade de subitamente me ver morando num lugar que nĂŁo posso pagar. Há muitas variáveis envolvidas no Ăndice IGP-M, e uma delas Ă© o preço do milho no mercado exterior, o que me faz pensar que os gringos estĂŁo comendo pipoca enquanto avacalham meu aluguel.
“Em resumo, acho que sou uma boa locatária”, escrevi no e-mail que enviei Ă imobiliária depois de ressaltar minha pontualidade nos pagamentos, meu bom relacionamento com os vizinhos, meu eventual esforço de passar cera no parquĂŞ. A proprietária deve ter se convencido pelo meu apelo, porque chegamos a um acordo. Fiquei feliz de saber que posso manter a minha janela com uma vista que Ă© apenas parcialmente bloqueada por outro prĂ©dio, que me permite observar um conjunto de casas antigas com telhados bonitos, o topo de umas quantas árvores nas quais os inverossĂmeis papagaios porto-alegrenses berram seus gritos, e de onde nĂŁo se escuta o ruĂdo da avenida duas quadras pros fundos, avenida que abriga um viaduto famoso da cidade, um viaduto que eu nunca antes observei de perto, e agora ainda menos, porque nĂŁo quero descobrir nele rachaduras tĂŁo prĂłximas.