Futebol é assunto de um naipe parecido com o tempo, a chuva, sol e calor, ou como é que vai sua mãe. É desses temas de elevador, de fila de padaria, de espera de consultório. Só que comigo dá errado, sempre. Minha relação com futebol é quase zero. E só não zerou total porque convivo em sociedade, tenho irmãos e pai, tios, primos no WhatsApp, além de vizinhança normal, dessas que soltam fogos quando tem jogo. O bar da esquina dá sinais de vida diferentes, conforme o campeão da semana. E isso a gente aprende a ler; com isso a gente aprende a conviver.
Tentei. Quando era adolescente, cheguei a comprar uma camisa azul celeste. Eu tentava encontrar lugar no mundo, coisa que ainda não achei direito, e o futebol era um caminho. Era um assunto que trazia as pessoas para a conversa e para a briga; era tema quente no seio familiar; chamava a atenção do garoto metaleiro bonito da escola; enfim, dava samba. Mas não consegui fingir gosto por muito tempo. A camisa virou pijama e o tema me aborreceu. Não dei mais bola.
Segui vida adentro (ou afora? Nunca sei) driblando o tal do futebol, embora seja quase impossĂvel. Ă€s quartas, atĂ© a novela das nove da Globo Ă© empurrada pelas partidas, quaisquer que sejam. No domingo, costuma ser o assunto nas esquinas e nos sofás. NĂŁo há um domingĂŁo em que, em algum momento do papo do nĂşcleo familiar, o campeonato mineiro ou brasileiro nĂŁo apareçam. Em especial os homens passam mafiosamente a falar entre si, com cenho franzido e tudo, levando a pauta muito a sĂ©rio. Chegam a planejar os compromissos da semana segundo as traves das tabelas de campeonato.
A quantidade e a duração dos programas de tevĂŞ sobre futebol tambĂ©m dĂŁo noção do tamanho da encrenca. Tem hora que Ă© um exercĂcio repetitivo punk fugir de debates sobre jogadores ou de replays de jogos recentes. E mesmo quando nĂŁo Ă© isso, atĂ© os jornais de notĂcias guardam lá seu Ăşltimo quinto ou quarto pro assunto, se algum jogador já nĂŁo tiver aparecido noutras seções. Eles sĂŁo assunto se mudaram de time, de namorada, de roupa, de patrocinador; se foram presos por tráfico ou por sonegação de impostos; se falaram besteira em campo ou fora dele; se morreram ou se tiveram filhos.
Fiquei aliviada quando soube que futebol nĂŁo Ă© do gosto da maioria. Há um nĂşmero assim que rola por aĂ, mas nĂŁo importa muito. Como quem gosta Ă© mais barulhento e domina tudo, a quem nĂŁo gosta sĂł resta aprender a conviver e a se desviar. Uma caneta aqui, um chapĂ©u ali e a gente se livra das imagens, do assunto e atĂ© dos fogos de parte da vizinhança eufĂłrica.
No entanto, preciso confessar que atĂ© eu tenho lembrança nĂtida de uns jogos, dois ou trĂŞs. O mais recente foi aquele 7 a 1, a que assisti de trás do sofá onde a maioria da famĂlia se apinhava. Como minha atenção nĂŁo estava exatamente no jogo, eu dava umas piscadas e de repente ouvia que foi gol, gol, gol, gol, gol, gol e gol… E meus olhos custavam a acreditar no que estava acontecendo. E comecei a perguntar: gol de quem? Mas como assim, gente? É replay, Ăł. NĂŁo Ă© outro gol, Ă© replay. Mas nĂŁo era replay. E eu comecei a rir nervosamente daquela goleada surreal. E me senti tambĂ©m um pouco alegre, intimamente risonha e secretamente vingada.
Já meu pai, futeboleiro inveterado, orgulhoso de ter participado das peladas das segundas atĂ© os 60 anos (sĂł parou porque todo mundo foi ficando mais novo), tem histĂłria bem diferente e nĂŁo conseguiu me legar esse gosto pela pelota. Ăšnico cruzeirense de seis irmĂŁos, sĂł passou batido porque exercia poderes de primogĂŞnito. SĂł falavam dele pelas costas. Nos almoços de famĂlia, era aquele monte de homem vestido de zebra e ele lá, reinando absoluto, mas sem camisa de time, porque nunca gostou de uniforme. Bom, ocorre que o CruzeirĂŁo se lascou todo, recentemente, e foi rebaixado e tal e deixou a massa triste, incluindo meu pai, que nem assim se curva. Assisti curiosa Ă ligação que os irmĂŁos fizeram para ele, em seu aniversário de 76 anos, e nĂŁo me escapou seu gĂŞnio ao responder bem a uma provocação arriscada:
– E agora, irmão, será que você vira atleticano?!
– Que nada! Agora ficou melhor! Tenho 19 times para torcer!
É isso. Pensei: aprendam. Esse foi de placa. E foi mal aà a crônica contra-hegemônica. Acontece.