* Série LeituraBR
Não disse que faria uma série? Pois é. É o que de mais fino se pode fazer como cronista. Vou então sustentar o tema da leitura, usando como mote alguns resultados intrigantes e instigantes da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mais recente.
Se no mês passado embarquei na imensa maioria que disse preferir ler em casa, neste abril outonal vou encarar os 82% de compatriotas que lamentam não ter lido mais, nos meses imediatamente passados; e entre eles, os quase metade (47%) que alegam ter ficado aquém do desejado por falta de tempo. Simples assim. Interessante saber também que dentre esses 47% que não tiveram tempo para ler livros nos meses que precederam a pesquisa, uma parte grande é justamente os que têm escolaridade superior. Talvez os que não a têm não precisem da “desculpa”.
Poxa, quando vi aquele estupendo nĂşmero 82%, cheguei a ficar triste. Uma massa enorme de pessoas queria ter lido mais e nĂŁo conseguiu ou nĂŁo pĂ´de. Os sentimentos sĂŁo conflituosos, confusos, misturados. Que pena que nĂŁo deu para ler, mas que bom que queriam. Ao menos queriam. Mas aĂ a falta de tempo veio com tudo e atravancou o caminho. A pedra que lá estava nĂŁo era cascalhinho, era um monĂłlito chileno desses Ă beira mar. Ler Ă© atividade que exige atenção, vigĂlia, inteligĂŞncia acesa. Como Ă© que se lĂŞ em trânsito, de pĂ© no busĂŁo? Ou como Ă© que se lĂŞ cansado, caindo pelas tabelas, depois de chegar em casa Ă noite? Se for mulher entĂŁo, ainda tem o lanche da moçada, a limpezinha do banheiro e os preparativos pro almoço de amanhĂŁ, talvez umas mudinhas de roupa para passar. Jogo rápido. Quando a gente finalmente se deita e dá a sorte de o companheiro querer dormir, pega o livro ali na cabeceira, tira a poeira que se acumulou na capa e dorme já no primeiro parágrafo.
E por que será que as pessoas de escolarização superior alegam mais a falta de tempo? É que elas realmente nĂŁo o tĂŞm (em nĂveis maiores que outras pessoas)? Ou Ă© que elas desejariam ter lido mais, enquanto pessoas menos escolarizadas tĂŞm menos essa vontade? Ou será que elas apenas percebem que dizer que gostariam de ter lido, mas, poxa, nĂŁo deu… fica melhor na fita do que dizer logo de cara que nĂŁo tĂŞm interesse em livros e leituras? Quanta hipĂłtese me veio, diante desses percentuais acentuados. (Bom, ave pesquisa qualitativa!)
Eu fico besta de ver como conseguir ler um livro inteiro, em boa cadĂŞncia, Ă© realmente difĂcil. Sinto-me sempre driblando algo, escondendo o jogo, fingindo de morta e escapando do ataque das demandas diárias e incessantes. O livro fica na cabeceira ou na mesa do escritĂłrio, mas pode nĂŁo ser aberto por semanas a fio. O detalhe Ă© que sou uma professora… E minha cabeça urdiu uma ideia meio atravessada de que ler deveria fazer parte do dia a dia de uma professora e de um professor. Se nĂŁo faz parte da vida de outros e outras profissionais, vejamos caso a caso, mas acho bem curioso que o tempo de estudar seja colonizado por tudo quanto Ă© tarefa e preenchimento de relatĂłrio que a gente Ă© – e nĂŁo Ă© – capaz de imaginar. É como se ler, afinal, fosse uma atividade improdutiva, nesse sentido capitalista que a gente conhece bem, e afinal sĂł pudesse ser feita nas horas vagas. Bom, mas onde estĂŁo as horas vagas mesmo, teacher?
Poxa, eu queria ter lido mais. Não deu. Rolou aqui uma tremenda falta de tempo. Mas certamente li bastante acima da média. O que me deixa aliviada, pessoalmente, mas triste, no coletivo. Não sei se estou ali entre os 82% ou se já posso me instalar entre as pessoas que conseguiram escapar da maioria esmagadora. Dá licença, gente boa, mas eu vou ler sim.