Quem você convidaria para um jantar? Vale qualquer pessoa, viva ou morta.
Ao contrário da velha questão “quem o ou o quê eu levaria para uma ilha deserta”, o convite para o jantar é fácil.
Este texto é motivado por uma sorte de raiva que não é ira, mas irritação. Quando Natalia Ginzburg escreveu no seu As pequenas virtudes, o texto La Maison Volpé, ela estava morando em Londres. A década era final da cinquenta e início da sessenta. Comecei a ler balançando a cabeça em aprovação com a familiaridade reconhecida na narrativa. Até que fui golpeada por um sentimento de indignação pela enorme injustiça cometida pela narradora de Natalia. Sim, a narradora de Natalia. O problema que eu tenho com o texto não é exatamente a profunda relação de desgosto que ela tem com a comida servida na Inglaterra. A questão é que o texto é, claro, escrito de forma impecável e cristaliza um momento inoportuno e triste na culinária deste país onde eu moro. Para os mais mal avisados ou para os que não avançaram no tempo, esse momento ao qual ela se refere no texto pode servir como verdade.
Há quem acredite que os ingleses ainda vivem de comer enlatados e que a mesa dos britânicos ainda reflete aquele cartão postal que já era velho quando eu cheguei aqui há vinte anos: na imagem, casais italianos, alemães e franceses dizem, sentados à mesa antes de comer, na própria língua “bom apetite”. Os ingleses, olhando uma caixa de purê de batata, uma lata de feijão ao molho de tomate e uma garrafa de catchup dizem “nevermind”. É engraçado, mas não é verdade. E eu sinto decepção por não poder convidar a narradora do texto da Natalia para um jantar e contar a ela que hoje bebemos vinhos de todos os lugares, comemos comida de todos os cantos, italiana, inclusive.
Natalia, você acredita que há quem pense que a Inglaterra não produz queijos e vinhos deliciosos? Há quem pense que só se colhe batatas, maçãs e couve-flor nestas terras. Você não acreditaria na revolução culinária que sofreu este país. Você, claro, sabe que o Reino Unido se juntou à União Europeia, o que fez dos ingleses um povo mais continental. Uma tristeza que depois de tanto, voltamos no tempo e saímos do bloco. Mas quando meus filhos forem adultos, a gente volta a fazer parte do continente, tenho certeza. (Coitados, vão ter que catar os cacos deixados agora.)
Eu gostaria tanto que a narradora de Natalia engolisse as próprias palavras. Não a seco, claro: com um bom vinho, evidentemente, e de preferência proveniente de Kent.
É normal essa crítica, afinal a narradora é italiana. É comum que todo italiano acredite que sua comida seja a única digna de ser ingerida. Há certa razão nesse orgulho todo. Eu morei na província de Nápoles, e a comida de lá é mesmo impressionante. Foram quase nove meses passados entre pastas de todo jeito, saladinhas com azeite, frutos do mar, gelatos e, claro, a pizza. Não dá para discordar de Natalia que entre uma tigela de spaghetti alle vongole e um prato de fish fingers, não há escolha alguma a ser feita. Mas é também possível que a melancolia da narradora de Natalia em relação à comida seja, em parte, interna e, em parte, pelo clima. Não há dúvidas de que uma salada banhada pelo sol mediterrâneo tem um sabor infinitamente mais interessante que se enquadrada pelo cinza de Londres, por mais cosmopolita que seja a cidade.
Queria dizer para a narradora de Natalia que nem todos aqui se parecem com a Sra. Crowe, tão bem identificada e descrita por Virginia Woolf em Cenas londrinas. Aquela formalidade ao se sentar à mesa não é a regra, e a inabilidade de ser espontâneo há muito foi modificada. Os ingleses já conseguem ter a capacidade de falar alto e discutir política, filosofia e artes exatamente com a mesma paixão que os italianos num barzinho de Florença, mas sem a pipoca porque eles preferem castanhas e batatas fritas, imagine! E, claro, como minha convidada para jantar, eu não poderia deixar de contar a Natalia uma pequena história, verídica, claro.
Quando eu morava em Sorrento, tive um namorado que, certa vez, me convidou para almoçar na casa dele num domingo de Páscoa. A mãe e a avó fariam a comida e eu jamais, em toda a minha vida, teria a chance de provar algo tão bom, ele me garantiu. Lá chegando, encontrei aqueles abraços de afeto que me lembraram o meu próprio país de origem. Na hora de comer, nos sentamos cercados de tanta comida, tanto vinho, tanto pão, azeite, uma rápida oração pela ressurreição de Jesus. O prato principal era frango e enquanto eu comia, todos me olhavam como se esperassem que eu confirmasse que sim, era aquela a melhor comida da minha vida, ainda tão breve com vinte e sete anos, e que eu nunca comeria algo tão divinamente bom, feito pela mamma e pela nonna.
É claro que concordei que era sim, a melhor comida do mundo porque eu tenho juízo, educação e a comida era boa, sim. Mas, narradora da Natalia, bom mesmo foi o miojo com queijo que eu comi num dia de ressaca impressionante, depois de passar a noite num pub em Londres bebendo muito vinho e discutindo política e rindo sem qualquer melancolia ou formalidade. Aquilo que você escreveu ao Italo Calvino de que a Inglaterra não veria você tão cedo, aquilo foi precipitado, Natalia. Aquilo foi precipitado.