🔓 El Supremo (4)

Uma discussão sobre a importância da memória na construção das narrativas
Augusto Roa Bastos, autor de “Yo el supremo”
01/04/2023

Volto, ainda esta vez, ao texto de Yo el supremo, grande obra do paraguaio Augusto Roa Bastos. Nesta coluna, pretendo ater-me a questões que o protagonista do romance, o ditador supremo, levanta sobre conceitos como narrativa e memória, esticando as reflexões para a seara da tradução.

Roa Bastos, por intermédio de seu protagonista, questiona o papel da memória na produção da escritura, expressando opiniões que a enquadram entre o nefasto e o irrelevante, com um curioso apontamento sobre a perfeição que reveste o miraculoso instrumento chamado de “caneta-recordação”.

A memória é, acima de tudo, considerada como vetor incapaz de produzir uma correta transcrição do real em palavras: “Sabe o que é a memória?”, pergunta o supremo. E ele mesmo responde: “Estômago da alma, disse erroneamente alguém. Embora no ato de nomear as coisas nunca haja um primeiro. Nada mais há que uma infinidade de repetidores. Só se inventam novos erros. Memória de um só não serve para nada”.

Para o supremo, o ideal seria descartar a memória individual — embora talvez nem tanto a memória coletiva — como instrumento legítimo de construção de narrativas. Diz ele a seu amanuense: “Esquece a tua memória. Escrever não significa converter o real em palavras, mas fazer que a palavra seja real”. E complementa: “Acontece que a tua maldita memória recorda as palavras e esquece o que está atrás delas”.

O conceito de memória é também invocado para ressaltar a prevalência do oral sobre o escrito: “O que está escrito no Livro de Memórias tem que ser lido primeiro; ou seja, tem que evocar todos os sons correspondentes à memória da palavra, e esses sons têm que evocar o sentido que não está nas palavras, mas que foi unido a elas por movimento e figura da mente em um instante determinado, quando se viu a palavra pela coisa e se entendeu a coisa pela palavra”.

E, apesar de todas essas ponderações, a memória impessoal — materializada na “caneta-memória” — é o instrumento por excelência da escrita fidedigna, o aparelho inventado pelo supremo para descrever a realidade tal como ela é, imageticamente. Ou quase isso, segundo os elementos de dúvida lançados pelo próprio ditador.

Nota-se todo um processo de tradução subjacente às considerações do protagonista de Yo el supremo sobre a construção da palavra e seus sentidos, da memória e das narrativas que se elaboram na confluência das lembranças com a realidade.

Como todo ato tradutório, também a recuperação dos arquivos da memória e sua transcrição em narrativa/texto sofre todo tipo de crítica, censura, reprimenda — e não só do ditador supremo. Esse questionamento se verifica especialmente no caso da memória individual — a única que de fato pode ser considerada “memória”, no sentido de repositório exclusivamente mental de informações.

Essas passagens de memória em texto, de texto em leitura, de leitura em tradução são todas altamente problemáticas — e Roa Bastos, por intermédio de seu protagonista, trabalha muito bem esse tema complexo.

A complexidade é tão acachapante que o supremo busca um escape nas fantasias de uma caneta mágica ou de uma nova linguagem plenamente transparente à realidade.

A voz crítica do supremo, embora talvez excessivamente severa, tem bom amparo na realidade das transições imperfeitas que testemunhamos todo o tempo. Que se há de fazer? A proliferação das interpretações é incontrolável. O protagonista de Roa Bastos, como supremo ditador, apenas se insurge inutilmente contra a contínua insubordinação dos sentidos.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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