🔓 El Supremo (1)

Romance de Augusto Roa Bastos exibe uma construção peculiar, entrelaçando história e ficção
O paraguaio Augusto Roa Bastos, autor de “Yo el supremo”
01/01/2023

Começo, com este texto, uma série de reflexões suscitadas pela leitura de Yo el supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos. Especificamente, vou me referir à segunda edição (1987) da Ediciones Cátedra, com longo estudo introdutório de Milagros Ezquerro. O texto é rico em insights que podem ser facilmente transportados ao terreno da tradução.

Contra um pano de fundo histórico realista, o romance cria cogitações e recria episódios da vida do ditador José Gaspar Rodríguez de Francia, que governou o Paraguai entre 1811 e 1840.

A obra exibe uma construção peculiar, muito marcada pela intertextualidade, entrelaçando história e ficção e entretecendo escritos de diversas épocas, origens e autores. O próprio “compilador”, um dos personagens do romance, define suas fontes (traduzo eu): “Esta compilação foi recolhida — mais digno seria dizer arrebatada — de uns vinte mil maços, éditos e inéditos; de outros tantos volumes, folhetos, periódicos, correspondências e toda sorte de testemunhos ocultados, consultados, catados, espiados, em bibliotecas e arquivos privados e oficiais”. E ele mesmo complementa, para não deixar dúvidas: “Em lugar de dizer e escrever coisa nova, não fez mais que copiar fielmente o já dito e composto por outros”.

A propósito da figura do “compilador”, Ezquerro comenta que seu protagonismo, em detrimento do “autor”, é uma das características desta obra de Roa Bastos, inclusive em razão de “uma postura ideológica bem particular com relação à escritura e à linguagem […] [que] supõe que se considere a linguagem e toda obra de linguagem como bem comum e coletivo, e não como a propriedade privada e intangível de um ‘autor’”.

O texto de Yo el supremo, assim, em modo de construção coletiva, transparece como resultado da apropriação de fragmentos diversos de textos de outrem e de outras épocas, que são harmonizados sob a batuta de um organizador incógnito que desconsidera não apenas autoria, mas também cronologia e os próprios limites entre História e ficção. Essa composição, conforme Ezquerro, é destinada “a leitores que dela devem se apropriar num ato de leitura ativa e produtora de sentido”.

A ideia do texto como compilação e como obra coletiva tem interessantes implicações para o estudo da tradução, que, na corrente contínua de textos, funciona como elo de transmissão e difusão do original rumo a novos contextos. O tradutor, nesse sentido, atua ao mesmo tempo como compilador — ao partir não apenas do texto-base, mas de um conjunto de textos que o cercam e ajudam a construí-lo — e autor — ao infundir em sua escritura parte de suas ideias e, no fundo, de si mesmo.

Outro traço marcante de Yo el supremo é a contínua tensão entre o ditador e seu amanuense, que se reflete, em particular, em tensão entre o texto oral e a escritura. Trata-se de uma nova visão, não religiosa, da corrupção que se percebe na conversão do verbo em texto escrito. Milagros Ezquerro, destaca, nesse contexto, a importância do copista, Patiño, que funciona como elemento fundamental no “trabalho perpétuo de dito-e-escreves”, o qual determina o jogo de escritura que o romance encena: “a passagem da palavra oral à escritura com sua inevitável traição”.

De fato, segundo o compilador, trata-se de um livro que foi primeiro lido, depois escrito – fato que acrescenta à obra, ainda que no plano puramente ficcional, um importante elemento tradutório, com seus inevitáveis traços de inovação, traição e transformação.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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