🔓 El diablo blanco

Desde muito cedo, plantei no inconsciente do meu filho que os "diabos brancos" são perigosíssimos: considero cumprido o meu papel como mãe
Ilustração: Bruno Schier
11/02/2021

A polonesa Olga Tokarczuk escreveu, em algum lugar que não lembro onde, “dormi como se estivesse morta”. Ou algo muito parecido com isso. Não anotei, transcrevo de memória.

Citar alguma coisa de memória é, para mim, a segunda maior homenagem que se pode fazer a alguém. A primeira, como todos sabem, é o roubo. Roubo mesmo, como Pablo Picasso e as máscaras Fang do Gabão. O que, em um trem descarrilado de pensamento, me leva à série Lupin, uma referência ao personagem Arsène Lupin, do escritor francês Maurice Leblanc. Os livros dele, da Agatha Christie e do Georges Simenon me fizeram companhia na adolescência. A série da Netflix é muito boa e o ator principal, Omar Sy, é lindo de morrer.

Guardei no coração o dormi como se estivesse morta por pura inveja. Já tentei de tudo: yoga, cortar cafeína, meditação, assistir àquele youtuber famosinho, sons de baleias, ler Heidegger e ouvir Oswaldo Montenegro. Não é que eu não durma completamente. É que eu durmo pouco e mal.

Minha mãe costumava dizer que de tédio ela não morreria, porque tinha um filho que não comia e uma filha que não dormia. Muitas décadas se passaram desde então e eu continuo não dormindo.

“É por que você mora no Brasil em 2021”, me disse um amigo francês. Sim, há uma certa verdade nessa afirmação. É realmente difícil adormecer sabendo que o Capitão Cloroquina ainda está no poder. Entretanto, em defesa da terra pátria, eu não sei dormir desde pequena, quando ainda tinha como preocupação principal da semana se ia ter campeonato de carrinho de rolimã na ladeira vizinha ou se as novas figurinhas tinham chegado no jornaleiro da esquina.

A minha relação com o sono é tão traumática que a música que eu cantava para embalar meu filho era Duerme negrito, que conheci na voz da Mercedes Sosa, a Magnífica. Até hoje desconfio de que ele dormia para se livrar do sofrimento de me ouvir cantar.

Muitas canções infantis trazem algum tipo de ameaça às crianças. O neném nana para Cuca não pegar, o cravo fica ferido e a rosa despedaçada, a canoa vira por causa da Maria que não soube remar, quem não marchar direito vai preso no quartel. É uma história de terror depois da outra.

Isso, por sua vez, tem raiz nos contos de fada, que eram assustadores propositalmente, para que as crianças não deixassem a segurança de onde moravam ou, pelo menos, da área sob controle da família. Surgiram na Idade Média e esse fato já deveria ser explicação suficiente.

Para mim, o exemplo mais gráfico dessa indústria do terror é A pequena vendedora de fósforos, em que a protagonista morre de fome e de frio do lado de fora de uma casa mas tudo bem porque então a menina se encontra com a sua avó morta, a única pessoa que a amava de verdade. A escola do meu filho, certa vez, adotou esse texto. Além de ser uma história horrível, naquela turma em específico havia um menino que tinha acabado de perder a mãe. Timing e sensibilidade, a gente vê por aqui. Se, em 2009, você ouviu gritos aí na sua cidade, era eu, desculpe se te assustei.

A grande ameaça de Duerme negrito é que “si el negro no se duerme, viene el diablo blanco y zaz! le come la patita”. Ou seja, desde muito cedo, plantei no inconsciente do meu filho que os diabos brancos são perigosíssimos.

Considero cumprido o meu papel como mãe.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho