🔓 Dupla cidadania

As diferenças (absurdamente grandes) que separam o Brasil (e seu governo paranoico) da Inglaterra no combate à Covid-19
Ilustração: Thiago Thomé Marques
20/04/2021

A pandemia está acabando.

A pandemia está só começando.

Foi anunciado o plano para sairmos dessa, aqui na Inglaterra. Abrimos as janelas, o ar já era outro.

Na minha cidade em Minas, a notícia de um óbito.

Uma amiga me enviou uma mensagem. Ela estava com saudades e propunha uma caminhada pela floresta vazia. Que levássemos uma garrafa térmica para disfarçar o whiskey dentro. Iríamos fofocar e rir até ficar sem ar.

No Brasil ficam sem ar.

Num grupo de whatsapp, a preocupação são os cabelos que ficaram verdes, vermelhos, loiros, pretos durante a pandemia. Era para cobrir os brancos, mas não deu certo e agora, com o cabeleireiro marcado, morrem de rir.

No Brasil morrem. Há quem ainda vá ao cabeleireiro. Os salões deveriam estar fechados. Os cabeleireiros morrem de fome se não abrirem. No Brasil, o governo não cuida da sua gente.

Em abril do ano passado anunciaram aqui que o governo pagaria os financiamentos de quem tinha prestações da casa própria. Pagariam quase que o salário integral de todo mundo para que esse mesmo mundo ficasse em casa, não passasse fome e não morresse.

No Brasil havia uma coisa boba, uma gripezinha e um calvário para arrecadar um benefício miserável.

As cutículas cresceram, as unhas foram quebrando e ficando roídas – tanto nervoso.

No Brasil, a madame precisa fazer as unhas a todo custo. A todo custo mesmo tanto que Miguel morreu.

No aniversário de um colega, meu filho entrega o presente na porta, toca a campainha e dá bons dez passos para trás. Meu filho sente falta de outros filhos, os das outras mães que também agonizam com essa solidão infantil.

No Brasil há festas. Há também um encontro rápido no Natal, ano novo, páscoa porque, ai meu Deus, essa saudade quem aguenta?

Aqui são três anos de saudade. Não há emoji de coração partido ou inteiro que dê conta da distância e frieza que o tempo impõe. Os dias passam com dramas normais e extraordinários e as notícias já antigas pipocam no celular. A minha vida também vai andando. Quantos exames médicos, sustos, alegrias, dúvidas, indignação eu preciso engolir sozinha?

Ainda assim, vejam bem, estamos vivos. Vamos celebrar. Pubs vão abrir, vamos fazer piqueniques em Hyde Park. Vamos comemorar ter escapado dessa. Uma selfie, come on, bottoms up!

No Brasil dois mil mortos em um espaço de vinte e quatro horas. Silêncio.

Aqui um número impressionante de gente perdeu a vida. O país é pequeno, a população recebe dinheiro para não passar fome e ficar em casa. Ainda assim, mais de cem mil vidas acabaram.

Mas as coisas estão melhorando, não estão? Manicure, pedicure, site de passagens aéreas voltam a animar a mente. Só não pode viajar para o Brasil. Vamos lá, anime-se!

Minha cabeça dói, lateja. Não há qualquer futuro à espreita para um reencontro em vida.

Mas vai passar, não é? O importante é aguentar firme, ter esperança. Vai passar. Está passando, está passando.

Um país em fase terminal, quatro mil vidas foram perdidas em vinte e quatro horas. Vamos ter esperança. Quatro mil duzentas e onze vidas em vinte e quatro horas. Vamos ter esperança.

Fim.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

Rascunho