🔓 Dos números às letras

O matemático Celso José da Costa surpreendeu o meio literário ao ganhar o prêmio LeYa com o romance "A arte de driblar destinos"
Celso José da Costa, autor de “A arte de driblar destinos” Foto: Nato Bigio
01/01/2023

Estamos em 1913. Um aluno um tanto esquisito participa das aulas do matemático, lógico e escritor Bertrand Russell, em Cambridge. No fim do semestre, ele se aproxima do professor e faz uma pergunta insólita: “O senhor poderia fazer a fineza de me dizer se sou ou não um completo idiota?”. Russell, um tanto surpreso, disse que não tinha como saber e questionou o motivo. O aluno retrucou: “Caso seja um completo idiota, me dedicarei à aeronáutica; ao contrário, tornar-me-ei filósofo”. Russell propôs então a escrita de um texto filosófico durante as férias. Quando recebeu o material, ao ler apenas a primeira proposição, Russell exclamou: “Não, você não deve se tornar um aeronauta”. Esse jovem, Ludwig Wittgenstein, acabou se tornando um dos maiores filósofos da história.

Estamos em 2022. Um aluno um tanto excêntrico participa de vários dos meus cursos online. Ele já havia me escrito dizendo que também era matemático e que se interessava por literatura. No fim do semestre, falei de um trabalho que realizo — Leitura crítica de inéditos — e ele se mostrou interessado. Dias depois, me contou que havia autopublicado um livro, A vida misteriosa dos matemáticos, e que também pretendia autopublicar o recente romance que me enviava para análise crítica. Googlei o Celso José da Costa: gênio da matemática que resolveu um problema em aberto por 206 anos. O mundo inteiro o cita como o descobridor da Superfície Costa. Pensei: “Ok, tudo bem, mas e como será a sua literatura?”. Então, ao ler o primeiro capítulo, surpreendido, exclamei: “Não, ele não deve autopublicar esse livro”. Propus uma conversa, sugeri algumas alterações e disse que o livro era maravilhoso, fascinante, com narrativa e linguagem incríveis e que poderia receber um grande prêmio literário. Recomendei a inscrição no Prêmio LeYa e ele, um pouco incrédulo, enviou o manuscrito.

No final de outubro de 2022, Celso José da Costa foi anunciado como vencedor, por unanimidade, pelo romance A arte de driblar destinos. O livro foi descrito pela comissão julgadora como uma “saga familiar que reflete muito bem, com ritmo e vivacidade, o mundo social do interior do Brasil”.

• Para resolver grandes problemas matemáticos é preciso de muita juventude, de um bocado de ousadia e uma (ou várias) pitada de genialidade. Pode nos contar um pouco de você e da descoberta da Superfície Costa?
Nasci no interior mais antigo do Paraná, na fazenda Ribeirão do Engano. Sou o primogênito de uma família de cinco filhos. Durante minha infância morei em uma cidade bem pequena, onde me iniciei na escola primária. Depois mudamos para uma cidade maior, Santo Antônio da Platina, em busca de continuidade nos estudos. Desde os primeiros contatos com os números me apareceu a facilidade: sempre ajudava meus coleguinhas nos deveres da escola e explicava as contas mais difíceis. E nessa trajetória, após os estudos secundários, deixei a família no interior e fui para Curitiba estudar engenharia. Não me adaptei ao curso e mudei para medicina. Fiquei dois anos na engenharia e outros dois anos em medicina. Teve um tempo em que tentei seguir os dois cursos, mas terminei por desistir de ambos. Foi nesse momento de incertezas que encontrei um grupo de estudos em matemática na Universidade Federal do Paraná e terminei vindo para o Rio de Janeiro fazer um curso de verão no Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada). No ano seguinte, estava inscrito no mestrado. O Impa é o principal centro avançado de pesquisa em matemática da América Latina, e está entre os principais do mundo. Lá fiz o mestrado e o doutorado em matemática. Na tese de doutorado, descobri as equações de uma superfície que viria a resolver um problema de matemática com 206 anos de existência. Hoje a comunidade internacional denomina tal superfície-solução de Superfície Costa. Quem se interessar pela imagem da superfície pode consultar o google com a palavra-chave Costa Surface.

• Creio que a dedicação para solucionar um problema de tal magnitude tenha sido enorme. Durante esses anos, você lia os clássicos literários? Literatura contemporânea? A literatura te interessava em qual nível?
Sim, sem dúvida. Chegar ao ponto de resolver um problema com esse nível de sofisticação exigiu um longo caminho e muita dedicação. Mas foi uma trajetória sem atropelos ou estresse. Minha dedicação vinha de longe. Desde os meus doze anos estudei muita matemática. Meus professores me emprestavam livros diferentes e eu tinha um ritmo constante de, em média, estudar mais de quatro horas por dia, até em fim de semana. Mas, como disse, sem estresse, estudar matemática para mim sempre foi uma diversão. Então passei pelo mestrado, pelo doutorado e resolvi a tese, por assim, dizer, sem sofrer. A matemática sempre se me apresentou como lúdica. Mas apesar da imensa dedicação à matemática, carregava comigo as palavras. Fui um bom aluno também em português, e já no início das faculdades em Curitiba, morando numa casa de estudantes (mais de 200 moradores), tive uma biblioteca básica com um bom acervo de literatura. Também frequentava a Biblioteca Pública do Paraná, lia no local e trazia livros emprestados com regularidade. Consumia principalmente clássicos russos e brasileiros como Dostoiévski, Gogol, Machado de Assis e Lima Barreto. Lia também os contemporâneos de então, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Miguel Astúrias. Além de leitor dedicado, escrevia um diário, arriscava algumas poesias para consumo próprio, frequentava o teatro de vanguarda de Manoel Karam e ia com frequência ver peças e ouvir música no Teatro Guaíra. Havia uma vida cultural pulsante em Curitiba, no tempo dos meus vinte e poucos anos. Então, acho que apesar de todos os desvios estive sempre próximo da matemática e da literatura.

• Se a matemática é para os jovens, a literatura obriga leitura, sedimentação, repouso, tempo. Como foi a sua preparação (e sua vontade) para escrever os dois romances?
Comecei a me interessar pela literatura, a narrativa dos livros, assim que surgiu na minha frente a possibilidade. Lembro de ter topado na biblioteca da escola secundária com um livro de Mário Palmério, Vila dos Confins. O nome e a capa colorida me cativaram. Talvez tenha sido o primeiro livro encorpado que li, pois antes gostava muito de revista em quadrinhos, o Mandrake, o Tarzan e outros tantos. E do livro inaugural nunca mais deixei de ler com regularidade. Aos vinte anos já era um leitor consolidado. Agora quanto a escrever, lembro-me de ter rabiscado um caderno de poemas para uma menina por quem estava apaixonado, sem ser correspondido (situação ideal para um projeto de poeta!). Foi durante a escola básica e felizmente o caderno sumiu (anos depois, ela, já casada e com filhos, me garantiu que a peça se extraviou numa mudança). Também dessa data consta meu hábito de escrever em diários, de modo desorganizado, sempre sobre fatos diversos da vida corrente. Então desde sempre fui captado pelo poder da palavra. E no início foi a palavra falada. Meu pai foi um exímio contador de história. Não tinha estudo, mas uma capacidade extraordinária em descrever a cena de um fato acontecido. Foi o meu primeiro professor de literatura, ele quase analfabeto, e eu um ouvinte cativado. Então, nos anos maduros que vivo agora, a passagem da matemática — da qual me distancio em termos de pesquisa — para a produção literária foi uma passagem sem grande esforço. Há cerca de sete anos o desejo latente se manifestou e passei a escrever um livro na vertente do realismo fantástico, narrando a história da matemática, com o foco nas lendas que fizeram avançar essa disciplina. Levei quatro anos na produção do A vida misteriosa dos matemáticos. Depois comecei a escrever o livro atual [A arte de driblar destinos], distinguido pelo prêmio LeYa.

• Há uma disputa filosófica entre os que acreditam que a matemática é descoberta — uma revelação da natureza das coisas — ou é invenção — apenas um jogo divertido. Para você, a matemática é descoberta ou invenção? E a literatura?
Sou pela dualidade, tanto vigora a invenção quanto a descoberta. Se bem que prevalece mais a descoberta, a invenção é a propulsão inicial. Os 10 símbolos numéricos foram inventados ao longo da história, o zero sendo a última conquista. Uma vez concluído esse passo, um mundo está dado com suas regras definidas, e a nós basta descobrir. É como o jogo de xadrez. Foi inventado ou descoberto? Bem, perdido nas brumas do tempo, uma pessoa ou várias inventaram o jogo com suas regras. Depois veio a descoberta das melhores aberturas, as sequências que podem levar a um xeque-mate, um mundo de possibilidade foi sendo descoberto e outros tantos ainda restam a descobrir. E como no xadrez, a invenção em matemática não tem fim. Por isso, quem se dedica a essa nobre disciplina nunca fica desempregado. Sobre a literatura também aqui temos uma atividade híbrida, a invenção e a descoberta. Mas como na matemática, a invenção está na base primal, o que vem depois é a descoberta. Aliás na Biblioteca de Babel de Borges estão todos os livros que podem ser escritos, não é mesmo? A literatura nesse aspecto da invenção ou da descoberta tem sua matriz comparável à atividade do xadrez. Nesse sentido um dos maiores enxadristas de todos os tempos, o russo Alexander Alekhine (1892-1946) e o argentino Jorge Luis Borges são galhos da mesma árvore frondosa do conhecimento, têm o mesmo DNA.

• O seu romance autoficcional tem dois volumes: o primeiro, vencedor do LeYa, conta da sua infância e o segundo revela a descoberta da Superfície Costa. Pode nos falar um pouco mais sobre o enredo do livro premiado?
A arte de driblar destinos, vencedor do LeYa, reflete minhas vivências perambulando pelo interior mais profundo do Paraná, até minha chegada a Curitiba aos dezenove anos (caramba: isso é um spoiler!). Creio que a narrativa reflete de modo pícaro e dramático, as venturas e desventuras de um menino até o momento de seus dezenove anos, em sua trajetória de mudar a própria vida pela via do conhecimento. É uma caminhada com muitas dificuldades e superação, com destinos paralelos a todo momento aparecendo para toldar o objetivo central. Como cenário as pequenas cidades do interior com sua singular população de personagens, às vezes histriônicas, outras divertidas, imprevisíveis, como o coveiro, o faquir sertanejo, os feiticeiros, o médico temerário…

• Você autopublicou seu primeiro livro, A vida misteriosa dos matemáticos, e também está escrevendo outros romances. Pode nos contar um pouco mais sobre eles?
A vida misteriosa dos matemáticos pode ser enquadrado na esteira do realismo mágico. A história se passa num mundo paralelo, o Aleph, onde os matemáticos e filósofos de todas as épocas se reúnem para discutir a repercussão de suas descobertas e principalmente as lendas que suportam tais descobertas — a maçã caiu mesmo na cabeça do Newton? Arquimedes, após descobrir a lei da flutuação dos corpos em líquidos, saiu nu pelas ruas de Siracusa gritando Eureka!, Eureka!? E Giordano Bruno? Em que circunstância foi queimado na fogueira da Inquisição, por acreditar que Deus criou outros mundos povoados de vidas humanas no imenso Cosmo? E foi durante a preparação desse primeiro livro que me entusiasmei de tal modo com a nova fase de produzir literatura que me veio esse A arte de driblar destinos, e simultaneamente vieram outros textos, os quais virão à luz nos próximos anos. Desses inéditos o mais avançado — uma espécie de continuidade do livro premiado — tem o nome provisório de A geometria do chapéu do sambista. Mas tenho ainda dois outros textos a meio caminho. Todas essas narrativas são longas e nos próximos tempos virão a lume.

Celso José da Costa Foto: Nato Bigio

• Quais eram (ou ainda são) seus sonhos matemáticos? Foram realizados? Quais são (ou eram) seus sonhos literários?
No universo da matemática, quero seguir contribuindo com o ensino dessa disciplina. Sigo dando palestras lúdicas para estudantes de todas as idades. É uma atividade paralela, enquanto continuo a escrever romances. Um veio que pretendo explorar é o da escrita de romances dirigidos a jovens estudantes da escola básica. Romances lúdicos que possam revelar a beleza da matemática e servir de estímulo a carreiras científicas. Quanto a descobrir novos teoremas, creio que não voltarei a empregar minha energia nessa tarefa. Os sonhos literários, por ora, são dominantes. Preciso terminar essa série de romances já iniciados. Mas, lógico, fico atento à chegada da deusa da inspiração: se ela bater à minha porta e me eleger, posso sim pensar em um problema matemático de raiz.

• A mente, a labuta e dedicação do matemático funcionam diferente da mente, da labuta e da dedicação do escritor? Como se entrelaçam? Como se distanciam?
São cartilhas diferentes, então é preciso se preparar para um e outro caso. Quando me decidi a fazer literatura, tive que raspar alguns vernizes encalacrados em minha formação de matemático. O rigor, o pensamento dirigido para uma única meta vigora quando nos debruçamos sobre a folha em branco na faina de provar um teorema. Já a literatura é diversidade de assuntos com uma lógica outra, mais frouxa, eu creio. Inclusive se pode explorar a ambiguidade, as várias camadas, deixando ao leitor a tarefa de interpretar os fatos, segundo seu mundo interior de experiência. Minha trajetória de passagem do mundo matemático para o mundo da literatura foi com muito estudo preparatório, intensifiquei as leituras, assisti a muitos vídeos sobre a rotina dos grandes escritores e suas técnicas de criação, fiz vários cursos de escrita.

• O matemático Henri Poincaré, após longos períodos de estudo, caminhava para pegar o ônibus e tinha seus insights. Você acredita em insights literários? É no seu sítio, cercado por livros, que você se inspira/labuta?
Sim, os insights podem te pegar inesperadamente. É preciso ficar ligado o tempo todo. A literatura, como a matemática, é uma amante possessiva. Descobri logo isso. Então meu bloco de notas segue comigo para anotar alguma ideia que me salte à mente, ou na minha frente, seja qual for a circunstância. Durante minhas caminhadas pela manhã na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, (eu moro ao lado), vou refletindo sobre as cenas, vou tentando encontrar o melhor título para o livro, mentalmente ensaio diálogos, monto uma cena. Quando frequento um café, fico escutando as conversas na mesa ao lado e até acontecem casos em que mudo minha trajetória e sigo duas ou três pessoas em conversa pela rua, sempre buscando aprimorar a dicção dos diálogos. Mas gosto também de ficar longas temporadas em meu sítio na serra de Macaé, um lugar bem isolado, cercado pela mata, reescrevendo os textos. É a fase mais deliciosa, reescrever e reescrever em busca das melhores palavras e das melhores resoluções das cenas. E lógico enquanto avanço na escrita tenho meus companheiros de aventura, sempre estou lendo, tanto os clássicos quanto os contemporâneos.

• Inicialmente, você planejava a autopublicação de A arte de driblar destinos, mas mudou de rumo e conquistou o prêmio LeYa. Quais são suas expectativas?
Foi uma felicidade imensa ter o livro reconhecido pelo LeYa. Tenho consciência de que o prêmio pode ampliar o número de leitores dessa história e isso é o que mais deseja todo escritor. E sobre o futuro, tudo está aberto, vou continuar trabalhando com carinho no meu novo livro.

LEIA trecho inédito de A arte de driblar destinos.

Jacques Fux

Venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2013 com o livro Antiterapias. É doutor e pós-doutor em Literatura Comparada e um matemático apaixonado. Autor de Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo (Prêmio Capes de Melhor Tese do Brasil de Letras/Linguística), Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor e Meshugá: um romance sobre a loucura. Foi pesquisador-visitante na Universidade de Harvard e escritor residente na Ledig House, em Nova York.

Rascunho