Estamos em 1913. Um aluno um tanto esquisito participa das aulas do matemático, lógico e escritor Bertrand Russell, em Cambridge. No fim do semestre, ele se aproxima do professor e faz uma pergunta insólita: “O senhor poderia fazer a fineza de me dizer se sou ou não um completo idiota?”. Russell, um tanto surpreso, disse que não tinha como saber e questionou o motivo. O aluno retrucou: “Caso seja um completo idiota, me dedicarei à aeronáutica; ao contrário, tornar-me-ei filósofo”. Russell propôs então a escrita de um texto filosófico durante as férias. Quando recebeu o material, ao ler apenas a primeira proposição, Russell exclamou: “Não, você não deve se tornar um aeronauta”. Esse jovem, Ludwig Wittgenstein, acabou se tornando um dos maiores filósofos da história.
Estamos em 2022. Um aluno um tanto excĂŞntrico participa de vários dos meus cursos online. Ele já havia me escrito dizendo que tambĂ©m era matemático e que se interessava por literatura. No fim do semestre, falei de um trabalho que realizo — Leitura crĂtica de inĂ©ditos — e ele se mostrou interessado. Dias depois, me contou que havia autopublicado um livro, A vida misteriosa dos matemáticos, e que tambĂ©m pretendia autopublicar o recente romance que me enviava para análise crĂtica. Googlei o Celso JosĂ© da Costa: gĂŞnio da matemática que resolveu um problema em aberto por 206 anos. O mundo inteiro o cita como o descobridor da SuperfĂcie Costa. Pensei: “Ok, tudo bem, mas e como será a sua literatura?”. EntĂŁo, ao ler o primeiro capĂtulo, surpreendido, exclamei: “NĂŁo, ele nĂŁo deve autopublicar esse livro”. Propus uma conversa, sugeri algumas alterações e disse que o livro era maravilhoso, fascinante, com narrativa e linguagem incrĂveis e que poderia receber um grande prĂŞmio literário. Recomendei a inscrição no PrĂŞmio LeYa e ele, um pouco incrĂ©dulo, enviou o manuscrito.
No final de outubro de 2022, Celso José da Costa foi anunciado como vencedor, por unanimidade, pelo romance A arte de driblar destinos. O livro foi descrito pela comissão julgadora como uma “saga familiar que reflete muito bem, com ritmo e vivacidade, o mundo social do interior do Brasil”.
• Para resolver grandes problemas matemáticos Ă© preciso de muita juventude, de um bocado de ousadia e uma (ou várias) pitada de genialidade. Pode nos contar um pouco de vocĂŞ e da descoberta da SuperfĂcie Costa?
Nasci no interior mais antigo do Paraná, na fazenda RibeirĂŁo do Engano. Sou o primogĂŞnito de uma famĂlia de cinco filhos. Durante minha infância morei em uma cidade bem pequena, onde me iniciei na escola primária. Depois mudamos para uma cidade maior, Santo AntĂ´nio da Platina, em busca de continuidade nos estudos. Desde os primeiros contatos com os nĂşmeros me apareceu a facilidade: sempre ajudava meus coleguinhas nos deveres da escola e explicava as contas mais difĂceis. E nessa trajetĂłria, apĂłs os estudos secundários, deixei a famĂlia no interior e fui para Curitiba estudar engenharia. NĂŁo me adaptei ao curso e mudei para medicina. Fiquei dois anos na engenharia e outros dois anos em medicina. Teve um tempo em que tentei seguir os dois cursos, mas terminei por desistir de ambos. Foi nesse momento de incertezas que encontrei um grupo de estudos em matemática na Universidade Federal do Paraná e terminei vindo para o Rio de Janeiro fazer um curso de verĂŁo no Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada). No ano seguinte, estava inscrito no mestrado. O Impa Ă© o principal centro avançado de pesquisa em matemática da AmĂ©rica Latina, e está entre os principais do mundo. Lá fiz o mestrado e o doutorado em matemática. Na tese de doutorado, descobri as equações de uma superfĂcie que viria a resolver um problema de matemática com 206 anos de existĂŞncia. Hoje a comunidade internacional denomina tal superfĂcie-solução de SuperfĂcie Costa. Quem se interessar pela imagem da superfĂcie pode consultar o google com a palavra-chave Costa Surface.
• Creio que a dedicação para solucionar um problema de tal magnitude tenha sido enorme. Durante esses anos, vocĂŞ lia os clássicos literários? Literatura contemporânea? A literatura te interessava em qual nĂvel?
Sim, sem dĂşvida. Chegar ao ponto de resolver um problema com esse nĂvel de sofisticação exigiu um longo caminho e muita dedicação. Mas foi uma trajetĂłria sem atropelos ou estresse. Minha dedicação vinha de longe. Desde os meus doze anos estudei muita matemática. Meus professores me emprestavam livros diferentes e eu tinha um ritmo constante de, em mĂ©dia, estudar mais de quatro horas por dia, atĂ© em fim de semana. Mas, como disse, sem estresse, estudar matemática para mim sempre foi uma diversĂŁo. EntĂŁo passei pelo mestrado, pelo doutorado e resolvi a tese, por assim, dizer, sem sofrer. A matemática sempre se me apresentou como lĂşdica. Mas apesar da imensa dedicação Ă matemática, carregava comigo as palavras. Fui um bom aluno tambĂ©m em portuguĂŞs, e já no inĂcio das faculdades em Curitiba, morando numa casa de estudantes (mais de 200 moradores), tive uma biblioteca básica com um bom acervo de literatura. TambĂ©m frequentava a Biblioteca PĂşblica do Paraná, lia no local e trazia livros emprestados com regularidade. Consumia principalmente clássicos russos e brasileiros como DostoiĂ©vski, Gogol, Machado de Assis e Lima Barreto. Lia tambĂ©m os contemporâneos de entĂŁo, Gabriel GarcĂa Márquez, Julio Cortázar, Miguel AstĂşrias. AlĂ©m de leitor dedicado, escrevia um diário, arriscava algumas poesias para consumo prĂłprio, frequentava o teatro de vanguarda de Manoel Karam e ia com frequĂŞncia ver peças e ouvir mĂşsica no Teatro GuaĂra. Havia uma vida cultural pulsante em Curitiba, no tempo dos meus vinte e poucos anos. EntĂŁo, acho que apesar de todos os desvios estive sempre prĂłximo da matemática e da literatura.
• Se a matemática é para os jovens, a literatura obriga leitura, sedimentação, repouso, tempo. Como foi a sua preparação (e sua vontade) para escrever os dois romances?
Comecei a me interessar pela literatura, a narrativa dos livros, assim que surgiu na minha frente a possibilidade. Lembro de ter topado na biblioteca da escola secundária com um livro de Mário PalmĂ©rio, Vila dos Confins. O nome e a capa colorida me cativaram. Talvez tenha sido o primeiro livro encorpado que li, pois antes gostava muito de revista em quadrinhos, o Mandrake, o Tarzan e outros tantos. E do livro inaugural nunca mais deixei de ler com regularidade. Aos vinte anos já era um leitor consolidado. Agora quanto a escrever, lembro-me de ter rabiscado um caderno de poemas para uma menina por quem estava apaixonado, sem ser correspondido (situação ideal para um projeto de poeta!). Foi durante a escola básica e felizmente o caderno sumiu (anos depois, ela, já casada e com filhos, me garantiu que a peça se extraviou numa mudança). TambĂ©m dessa data consta meu hábito de escrever em diários, de modo desorganizado, sempre sobre fatos diversos da vida corrente. EntĂŁo desde sempre fui captado pelo poder da palavra. E no inĂcio foi a palavra falada. Meu pai foi um exĂmio contador de histĂłria. NĂŁo tinha estudo, mas uma capacidade extraordinária em descrever a cena de um fato acontecido. Foi o meu primeiro professor de literatura, ele quase analfabeto, e eu um ouvinte cativado. EntĂŁo, nos anos maduros que vivo agora, a passagem da matemática — da qual me distancio em termos de pesquisa — para a produção literária foi uma passagem sem grande esforço. Há cerca de sete anos o desejo latente se manifestou e passei a escrever um livro na vertente do realismo fantástico, narrando a histĂłria da matemática, com o foco nas lendas que fizeram avançar essa disciplina. Levei quatro anos na produção do A vida misteriosa dos matemáticos. Depois comecei a escrever o livro atual [A arte de driblar destinos], distinguido pelo prĂŞmio LeYa.
• Há uma disputa filosófica entre os que acreditam que a matemática é descoberta — uma revelação da natureza das coisas — ou é invenção — apenas um jogo divertido. Para você, a matemática é descoberta ou invenção? E a literatura?
Sou pela dualidade, tanto vigora a invenção quanto a descoberta. Se bem que prevalece mais a descoberta, a invenção Ă© a propulsĂŁo inicial. Os 10 sĂmbolos numĂ©ricos foram inventados ao longo da histĂłria, o zero sendo a Ăşltima conquista. Uma vez concluĂdo esse passo, um mundo está dado com suas regras definidas, e a nĂłs basta descobrir. É como o jogo de xadrez. Foi inventado ou descoberto? Bem, perdido nas brumas do tempo, uma pessoa ou várias inventaram o jogo com suas regras. Depois veio a descoberta das melhores aberturas, as sequĂŞncias que podem levar a um xeque-mate, um mundo de possibilidade foi sendo descoberto e outros tantos ainda restam a descobrir. E como no xadrez, a invenção em matemática nĂŁo tem fim. Por isso, quem se dedica a essa nobre disciplina nunca fica desempregado. Sobre a literatura tambĂ©m aqui temos uma atividade hĂbrida, a invenção e a descoberta. Mas como na matemática, a invenção está na base primal, o que vem depois Ă© a descoberta. Aliás na Biblioteca de Babel de Borges estĂŁo todos os livros que podem ser escritos, nĂŁo Ă© mesmo? A literatura nesse aspecto da invenção ou da descoberta tem sua matriz comparável Ă atividade do xadrez. Nesse sentido um dos maiores enxadristas de todos os tempos, o russo Alexander Alekhine (1892-1946) e o argentino Jorge Luis Borges sĂŁo galhos da mesma árvore frondosa do conhecimento, tĂŞm o mesmo DNA.
• O seu romance autoficcional tem dois volumes: o primeiro, vencedor do LeYa, conta da sua infância e o segundo revela a descoberta da SuperfĂcie Costa. Pode nos falar um pouco mais sobre o enredo do livro premiado?
A arte de driblar destinos, vencedor do LeYa, reflete minhas vivĂŞncias perambulando pelo interior mais profundo do Paraná, atĂ© minha chegada a Curitiba aos dezenove anos (caramba: isso Ă© um spoiler!). Creio que a narrativa reflete de modo pĂcaro e dramático, as venturas e desventuras de um menino atĂ© o momento de seus dezenove anos, em sua trajetĂłria de mudar a prĂłpria vida pela via do conhecimento. É uma caminhada com muitas dificuldades e superação, com destinos paralelos a todo momento aparecendo para toldar o objetivo central. Como cenário as pequenas cidades do interior com sua singular população de personagens, Ă s vezes histriĂ´nicas, outras divertidas, imprevisĂveis, como o coveiro, o faquir sertanejo, os feiticeiros, o mĂ©dico temerário…
• Você autopublicou seu primeiro livro, A vida misteriosa dos matemáticos, e também está escrevendo outros romances. Pode nos contar um pouco mais sobre eles?
A vida misteriosa dos matemáticos pode ser enquadrado na esteira do realismo mágico. A histĂłria se passa num mundo paralelo, o Aleph, onde os matemáticos e filĂłsofos de todas as Ă©pocas se reĂşnem para discutir a repercussĂŁo de suas descobertas e principalmente as lendas que suportam tais descobertas — a maçã caiu mesmo na cabeça do Newton? Arquimedes, apĂłs descobrir a lei da flutuação dos corpos em lĂquidos, saiu nu pelas ruas de Siracusa gritando Eureka!, Eureka!? E Giordano Bruno? Em que circunstância foi queimado na fogueira da Inquisição, por acreditar que Deus criou outros mundos povoados de vidas humanas no imenso Cosmo? E foi durante a preparação desse primeiro livro que me entusiasmei de tal modo com a nova fase de produzir literatura que me veio esse A arte de driblar destinos, e simultaneamente vieram outros textos, os quais virĂŁo Ă luz nos prĂłximos anos. Desses inĂ©ditos o mais avançado — uma espĂ©cie de continuidade do livro premiado — tem o nome provisĂłrio de A geometria do chapĂ©u do sambista. Mas tenho ainda dois outros textos a meio caminho. Todas essas narrativas sĂŁo longas e nos prĂłximos tempos virĂŁo a lume.

• Quais eram (ou ainda são) seus sonhos matemáticos? Foram realizados? Quais são (ou eram) seus sonhos literários?
No universo da matemática, quero seguir contribuindo com o ensino dessa disciplina. Sigo dando palestras lĂşdicas para estudantes de todas as idades. É uma atividade paralela, enquanto continuo a escrever romances. Um veio que pretendo explorar Ă© o da escrita de romances dirigidos a jovens estudantes da escola básica. Romances lĂşdicos que possam revelar a beleza da matemática e servir de estĂmulo a carreiras cientĂficas. Quanto a descobrir novos teoremas, creio que nĂŁo voltarei a empregar minha energia nessa tarefa. Os sonhos literários, por ora, sĂŁo dominantes. Preciso terminar essa sĂ©rie de romances já iniciados. Mas, lĂłgico, fico atento Ă chegada da deusa da inspiração: se ela bater Ă minha porta e me eleger, posso sim pensar em um problema matemático de raiz.
• A mente, a labuta e dedicação do matemático funcionam diferente da mente, da labuta e da dedicação do escritor? Como se entrelaçam? Como se distanciam?
SĂŁo cartilhas diferentes, entĂŁo Ă© preciso se preparar para um e outro caso. Quando me decidi a fazer literatura, tive que raspar alguns vernizes encalacrados em minha formação de matemático. O rigor, o pensamento dirigido para uma Ăşnica meta vigora quando nos debruçamos sobre a folha em branco na faina de provar um teorema. Já a literatura Ă© diversidade de assuntos com uma lĂłgica outra, mais frouxa, eu creio. Inclusive se pode explorar a ambiguidade, as várias camadas, deixando ao leitor a tarefa de interpretar os fatos, segundo seu mundo interior de experiĂŞncia. Minha trajetĂłria de passagem do mundo matemático para o mundo da literatura foi com muito estudo preparatĂłrio, intensifiquei as leituras, assisti a muitos vĂdeos sobre a rotina dos grandes escritores e suas tĂ©cnicas de criação, fiz vários cursos de escrita.
• O matemático Henri PoincarĂ©, apĂłs longos perĂodos de estudo, caminhava para pegar o Ă´nibus e tinha seus insights. VocĂŞ acredita em insights literários? É no seu sĂtio, cercado por livros, que vocĂŞ se inspira/labuta?
Sim, os insights podem te pegar inesperadamente. É preciso ficar ligado o tempo todo. A literatura, como a matemática, Ă© uma amante possessiva. Descobri logo isso. EntĂŁo meu bloco de notas segue comigo para anotar alguma ideia que me salte Ă mente, ou na minha frente, seja qual for a circunstância. Durante minhas caminhadas pela manhĂŁ na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, (eu moro ao lado), vou refletindo sobre as cenas, vou tentando encontrar o melhor tĂtulo para o livro, mentalmente ensaio diálogos, monto uma cena. Quando frequento um cafĂ©, fico escutando as conversas na mesa ao lado e atĂ© acontecem casos em que mudo minha trajetĂłria e sigo duas ou trĂŞs pessoas em conversa pela rua, sempre buscando aprimorar a dicção dos diálogos. Mas gosto tambĂ©m de ficar longas temporadas em meu sĂtio na serra de MacaĂ©, um lugar bem isolado, cercado pela mata, reescrevendo os textos. É a fase mais deliciosa, reescrever e reescrever em busca das melhores palavras e das melhores resoluções das cenas. E lĂłgico enquanto avanço na escrita tenho meus companheiros de aventura, sempre estou lendo, tanto os clássicos quanto os contemporâneos.
• Inicialmente, você planejava a autopublicação de A arte de driblar destinos, mas mudou de rumo e conquistou o prêmio LeYa. Quais são suas expectativas?
Foi uma felicidade imensa ter o livro reconhecido pelo LeYa. Tenho consciência de que o prêmio pode ampliar o número de leitores dessa história e isso é o que mais deseja todo escritor. E sobre o futuro, tudo está aberto, vou continuar trabalhando com carinho no meu novo livro.