🔓 Dois escritores e uma máquina do tempo

Após 30 anos, autores revisam “O Chalaça” e buscam deixar a leitura do livro mais objetiva e veloz
Ilustração: Ivo Minkovicius
12/02/2023

Trinta anos atrás, em fevereiro de 1993, eu estava fazendo a mesma que agora: revisando O Chalaça com Marcus Aurelius Pimenta.

O livro, meu primeiro, iria sair um ano depois, em março de 1994, e seria uma estreia com pé direito. Ganhou o Prêmio Jabuti na categoria romance e foi o Livro do Ano na categoria ficção. Além disso, no lançamento estampou a capa da ilustrada (com uma ótima análise de José Geraldo Couto), teve duas páginas na Veja e eu fui parar no programa do Jô Soares (onde me deram um whiskão para relaxar e deu certo). Ah, e já ia esquecendo a glória máxima: fiquei dez semanas na lista dos mais vendidos, duas em primeiro lugar, à frente de Paulo Coelho.

Por conta desta falsa biografia/diário do secretário do imperador, fui convidado a ter uma coluna semanal no Jornal da Tarde, onde fiquei por três anos, e depois na Folha de S. Paulo, onde fiquei uns doze. E assim pude viver de escrever.

Pelas minhas contas, até hoje o Chalaça vendeu 70.403 livros e é meu oitavo livro mais lido. Porém, depois de 2016, as vendas passaram a ficar entre 100 e 120 exemplares por ano, o que é decente para uma obra de sua idade, mas não chega a ser uma maravilha.

Então decidi pedir os direitos de volta e lançá-lo pela Padaria de Livros, minha euditora (o “u” não é erro). E, junto com Marcus, nos pusemos a revisar o texto mais uma vez.

Confesso que pensei que haveria poucas mudanças, afinal ele havia recebido um monte de prĂŞmios e elogios. Que ilusĂŁo… PrĂŞmios e elogios enganam. A “mexidinha” está sendo complicada e trabalhosa. Parece uma daquelas reformas em que vocĂŞ diz “acho que vou mudar o papel de parede do quarto” e acaba trocando fiação, encanamento e fazendo uma edĂ­cula nos fundos.

Estamos mexendo em muita coisa. NĂŁo na histĂłria, que continuará a mesma, mas no modo de escrever. Por exemplo, nĂŁo tĂ­nhamos o cuidado de evitar repetições de palavras (pegamos parágrafos com quatro “muitos”, o que Ă© muito), rimas indesejáveis, inĂşteis pronomes possessivos e excesso de advĂ©rbios de modo e seus “mentes” (infalivelmente, exatamente, etc…).

Notamos que a pompa do texto (em grande parte necessária, porque o narrador é pomposo) às vezes emperrava a leitura. Havia frases longas, de um parágrafo inteiro, que, na leitura em voz alta, quase nos matavam de falta de ar. E, por vezes, duas frases queriam dizer a mesma coisa. Acabamos limando uma delas.

Outra coisa que trocamos foram alguns palavrões. Um comum “filho da puta”, por exemplo, virou um sonoro “canalha”. O termo destoava um pouco de um narrador que se queria elegante e, desconfio, impedia que algumas escolas adotassem o livro.

A revisão chegou à metade do romance e o texto, que tinha 260 mil toques, já caiu para 255 mil. Ou seja, já foram embora 5 mil toques, quase mil palavras, número que deve dobrar até o final da revisão. Isso dá cerca de 4% do livro. Pode parecer pouco, mas, mal comparando, lembra aquela pelanquinha que o açougueiro tira da carne. É quase nada, mas deixa o filé mignon muito mais apetitoso.

De certa forma, eu e Marcus estamos conversando com nossos eus de trinta anos atrás. Nesse tempo, creio que o que mudou foi a nossa leitura miúda. Ficamos mais atentos (ou obcecados) pela caça aos pequenos defeitos para os quais nem ligávamos.

Hoje, praticamente sexagenários, somos mais rabugentos do que quando Ă©ramos impávidos trintões. Mas essa rabugice, para o leitor, significará uma leitura mais fluida e ágil. Quando Ă©ramos jovens, querĂ­amos fazer uma escrita mais arrastada e cheia de volteios. Agora, senhores grisalhos, tentamos ser mais objetivos e velozes. Vá entender…

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

Rascunho