🔓 Dois

As músicas que tornaram o cronista mais exigente consigo mesmo e não se contentasse com a ordem e o repertório das coisas que lhe eram dadas
Ilustração: Bruno Schier
28/03/2021

A sensação de estar trancado no apartamento amplifica o ruído ao redor. Abro as janelas, as portas, deixo a fúria entrar. O problema não se deve aos carros que passam em frente à minha rua, nem aos transeuntes que conversam gritando, ainda que não estejam vendendo nada. Moro no terceiro andar e é como se eles estivessem em minha varanda. Alguns são frágeis, conversam com anjos, refletem sobre política e recitam velhos versículos. Outros, agressivos, brigam com os parceiros de trago, com o amor, com o mundo. Os dias passam e ouço a coruja rasgar a mortalha da noite da mesma maneira que o bem-te-vi ronda a manhã. Nada disso me consterna. O problema maior vem de dentro. Ouço um zunido. Sua dimensão é vermelha e me faz consultar as notícias de hora em hora, minuto a minuto. Às vezes sinaliza uma saída tímida.

Emanuel me conta que agora sua internet é de fibra ótica. Ele nunca teve facilidade com tecnologia, não possui perfil no Facebook e procura zelar por sua privacidade. Passou dois dias lendo um manual de como implantar um sistema para promover aulas online. A exigência foi da escola onde trabalha. Preencheu formulários, baixou arquivos, instalou-os e descobriu enfim o que significa um bug. A assistência técnica não foi capaz de dar-lhe uma solução para o incômodo de saber que agora seus alunos terão acesso às paredes de seu lar, dois anos sem receber mão de tinta e o começo de uma rachadura vinda do teto.

Minha querida Emily Dickinson do Sertão joga a fumaça de seu cigarro sobre os telhados às margens da Praça do Relógio São Pedro e estoca barra de chocolates na geladeira para o caso de seus fornecedores subitamente desaparecerem. “Você leu A peste? Assistiu Guerra dos mundos”, ela me questiona. Depois, confessa se sentir triste, pois não lhe ocorreu nenhum verso enquanto admirava o céu.

Essas pausas servem de alívio. Contudo, o zunido persiste, pois a sensação de estar trancado amplifica nossa vulnerabilidade. Trancados, estamos por demais expostos. São chamados incessantes de bancos, magazines, avisos de golpes, promoções, correntes de fé, golpes, acontecimentos que precisamos e não precisamos saber. Chegam por sms, mensagens de zap, televisores, sites, tablets e folhetos jogados por baixo das portas.

Houve um tempo em que o silêncio permitia nossa escolha do chamado que desejávamos atender. Poderia ser, por exemplo, o de uma música ou de um disco em particular. Parávamos tudo para nos dedicar apenas à experiência de ouvir. E, ouvindo, escutar. A fruição plena exige uma entrega na mesma proporção. Cortázar adverte que jamais se deve ler escutando música, pois o resultado disso é que ou se despreza a música ou o objeto da leitura.

Aos dezenove anos eu ainda não havia lido Cortázar, mas intuitivamente seguia seu conselho. Soubera por um amigo, gerente de uma das principais lojas de discos de Brasília, que o Dois, o novo álbum da Legião Urbana, chegaria no princípio da noite de um sábado de julho. A expectativa era grande. Antes mesmo do lançamento oficial, a Transamérica FM obteve, por meio de um vazamento, a gravação de todas as suas faixas e as executou — em meio a vinhetas, propagandas e muita conversa fiada —, num único programa. Embora fosse muito difícil tecer uma opinião razoável a respeito da qualidade do material numa apresentação como aquela, as canções me pareceram fortes e interessantes. Quando cheguei na loja, meu amigo me informou que eu seria a primeira pessoa de todo o Distrito Federal a comprar o disco, pois a carga tinha acabado de chegar do aeroporto e eles foram também os primeiros a recebê-la.

Em casa, atravessei a sala sem falar com ninguém e segui em direção ao meu quarto. Certo de estar sozinho, fechei a porta, liguei o aparelho de som, conectei os fones de ouvido, tirei o Dois da sacola, pus no toca-discos, pus os fones e me sentei no chão com a capa e o encarte nas mãos. Primeiro, admirei a concepção do projeto, a aparente simplicidade da arte gráfica, o alto-relevo do título, a elegância da tipografia, a foto do encarte e as cores escolhidas. Em seguida, li cada uma das letras e a ficha técnica. Por fim, ao ver a agulha escorregar para os sulcos do vinil, fechei meus olhos e escutei o trecho com Será e o hino da Internacional Socialista que antecede Daniel na cova dos leões.

Se boa parte da crítica especializada considera esse álbum de uma importância indiscutível para a história do BRock, o que desejo enfatizar aqui é muito menos pretensioso do que empreender qualquer espécie de validação canônica. Trata-se de uma experiência individual de imersão em um universo subjetivo de símbolos, emoções e valores graças ao simples procedimento de calar o ruído ao redor para, enfim, captar a pulsação e os possíveis significados desse universo que representava o Dois para mim. Pode parecer pouco, mas o fato de eu ter escutado este disco talvez tenha sido determinante para que eu me tornasse um escritor. A apreensão de sua poesia foi muito mais direta, clara e espontânea do que as páginas dos livros lidos na escola.

Sentado e de olhos fechados em meu quarto, fui levado para dentro de um lugar misterioso e perigosamente sedutor. Senti revolta, medo, indignação, amor, raiva e enlevo. O que dizer do leque de referências culturais presente nas letras? De sua diversidade temática? Sua delicadeza e riqueza de detalhes? Ele atiçou minha curiosidade para a história, a arte, a política e a filosofia. Fez com que eu fosse mais exigente comigo mesmo e não me contentasse com a ordem e o repertório das coisas que me eram dadas. Ao mesmo tempo, tocou minha sensibilidade em pontos ainda obscuros do desejo.

Naquela distante noite de sábado, escutei a batida final das cordas do violão em Índios e, tal como acontece hoje, não foi preciso tentar, chorei. Emanuel e Emily também não necessitam da ajuda de espelhos. O zunido persiste.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

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