🔓 Doce ingênuo

Delcio Carvalho, com um lirismo entre a ternura e a melancolia, foi um gigante a escrever a vida de todos nós em sambas inesquecíveis
09/11/2022

Perdemos Delcio Carvalho no dia 12 de novembro de 2013. No próximo sábado, portanto, sua morte completa nove anos. Num país de parca memória e que costuma fazer pouco do compositor, como se letras e melodias nascessem magicamente na voz de quem canta, é preciso lembrá-lo. Delcio foi um artista imenso. Com seu lirismo tão particular, entre a melancolia e a ternura, falou dos amores que chegam e se vão, de sonhos capazes de buscar quem mora longe, dos vendavais que se revezam com a calmaria. Nossa vida, enfim.

Assim como Roberto Ribeiro, outro baluarte do Império Serrano, Delcio nasceu em Campos e veio ainda jovem para o Rio. Aqui, trabalhou de garçom, ascensorista, vendedor de enciclopédia e entregador de roupa de alfaiate. Por pouco não se transformou em batedor de carteira profissional, como relata Kátia Santos no livro Ivone Lara, a dona da melodia. Por mais incrível que possa parecer, havia mesmo naquele tempo um curso de batedor de carteira, que era ministrado na Rua Monte Alegre, no Bairro de Fátima. Delcio só não se matriculou porque não tinha dinheiro.

Seu primeiro encontro com Dona Ivone Lara, com quem escreveria algumas das mais incríveis páginas da música brasileira, se deu por intermédio de uma outra joia da coroa imperial: Silas de Oliveira. Corria o ano de 1972 e a cidade acabara de saber da morte de Silas, anunciada no rádio por Adelzon Alves. Delcio imediatamente começou a escrever um samba em tributo àquele que é chamado de Viga-Mestre da escola de samba de Madureira. “Quando a voz do poeta calou/ A natureza chorou forte/ E o seu pranto batendo no chão parecia/ Acompanhar a derradeira melodia”, diziam os versos de abertura da primeira parte.

O compositor, no entanto, buscava alguém para fazer o que, no mundo do samba, convencionou-se chamar de “segunda”. Por sugestão de Clovis Scarpino, jornalista da área de música, ele procurou Bacalhau, que havia assinado com Silas o clássico Os cinco bailes da História do Rio.

Acontece que Bacalhau estava nas últimas, consumido por uma forte tuberculose. A solução natural foi recorrer à outra parceira de Os cinco bailes. Delcio telefonou para a casa de Dona Ivone e, autorizado por Seu Oscar, o marido dela, partiu para Inhaúma.

Derradeira melodia inaugurou a profícua parceria entre os dois. Delcio passou a frequentar a casa de Dona Ivone. Em geral, ia para lá aos sábados. Ivone terminava os afazeres na cozinha e então se sentava com ele para compor. “Às vezes, eu partia direto da farra”, contou o compositor em certa ocasião.

Apenas três anos após a morte de Silas, o coração de Seu Oscar fraquejou. Odir, o filho mais velho de Dona Ivone, ainda se recuperava de um acidente de carro, e ela perdeu o marido. Foi uma fase sombria, que Delcio, sempre próximo, se mostrou capaz de traduzir em palavras. “Era muita tristeza e só a música trazia inspiração mesmo. O Delcio fazia letras tristes, porque olhava para mim e sabia o que eu estava querendo dizer com as melodias”, relembrou Ivone, em declaração à jornalista Mila Burns.

Com essa sintonia tão rara, a dupla compôs mais de 200 músicas. Entre elas, pérolas como Sonho meu, Acreditar, Alvorecer e Minha verdade. Meu amigo Álvaro Marechal costuma dizer que Delcio era um “doce ingênuo”. Vez por outra eu o encontrava caminhando de sunga pelo Aterro do Flamengo e então lembrava do epíteto. Em seu exercício matinal, o doce ingênuo era um igual entre os iguais. Talvez porque todos nós um dia tenhamos sorrido mesmo com o interior em prantos ou visto, em nosso céu, a estrela-guia se perder. Mas foi ele, Delcio, quem escreveu isso para a gente.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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