Perdemos Delcio Carvalho no dia 12 de novembro de 2013. No prĂłximo sĂĄbado, portanto, sua morte completa nove anos. Num paĂs de parca memĂłria e que costuma fazer pouco do compositor, como se letras e melodias nascessem magicamente na voz de quem canta, Ă© preciso lembrĂĄ-lo. Delcio foi um artista imenso. Com seu lirismo tĂŁo particular, entre a melancolia e a ternura, falou dos amores que chegam e se vĂŁo, de sonhos capazes de buscar quem mora longe, dos vendavais que se revezam com a calmaria. Nossa vida, enfim.
Assim como Roberto Ribeiro, outro baluarte do ImpĂ©rio Serrano, Delcio nasceu em Campos e veio ainda jovem para o Rio. Aqui, trabalhou de garçom, ascensorista, vendedor de enciclopĂ©dia e entregador de roupa de alfaiate. Por pouco nĂŁo se transformou em batedor de carteira profissional, como relata KĂĄtia Santos no livro Ivone Lara, a dona da melodia. Por mais incrĂvel que possa parecer, havia mesmo naquele tempo um curso de batedor de carteira, que era ministrado na Rua Monte Alegre, no Bairro de FĂĄtima. Delcio sĂł nĂŁo se matriculou porque nĂŁo tinha dinheiro.
Seu primeiro encontro com Dona Ivone Lara, com quem escreveria algumas das mais incrĂveis pĂĄginas da mĂșsica brasileira, se deu por intermĂ©dio de uma outra joia da coroa imperial: Silas de Oliveira. Corria o ano de 1972 e a cidade acabara de saber da morte de Silas, anunciada no rĂĄdio por Adelzon Alves. Delcio imediatamente começou a escrever um samba em tributo Ă quele que Ă© chamado de Viga-Mestre da escola de samba de Madureira. âQuando a voz do poeta calou/ A natureza chorou forte/ E o seu pranto batendo no chĂŁo parecia/ Acompanhar a derradeira melodiaâ, diziam os versos de abertura da primeira parte.
O compositor, no entanto, buscava alguĂ©m para fazer o que, no mundo do samba, convencionou-se chamar de âsegundaâ. Por sugestĂŁo de Clovis Scarpino, jornalista da ĂĄrea de mĂșsica, ele procurou Bacalhau, que havia assinado com Silas o clĂĄssico Os cinco bailes da HistĂłria do Rio.
Acontece que Bacalhau estava nas Ășltimas, consumido por uma forte tuberculose. A solução natural foi recorrer Ă outra parceira de Os cinco bailes. Delcio telefonou para a casa de Dona Ivone e, autorizado por Seu Oscar, o marido dela, partiu para InhaĂșma.
Derradeira melodia inaugurou a profĂcua parceria entre os dois. Delcio passou a frequentar a casa de Dona Ivone. Em geral, ia para lĂĄ aos sĂĄbados. Ivone terminava os afazeres na cozinha e entĂŁo se sentava com ele para compor. âĂs vezes, eu partia direto da farraâ, contou o compositor em certa ocasiĂŁo.
Apenas trĂȘs anos apĂłs a morte de Silas, o coração de Seu Oscar fraquejou. Odir, o filho mais velho de Dona Ivone, ainda se recuperava de um acidente de carro, e ela perdeu o marido. Foi uma fase sombria, que Delcio, sempre prĂłximo, se mostrou capaz de traduzir em palavras. âEra muita tristeza e sĂł a mĂșsica trazia inspiração mesmo. O Delcio fazia letras tristes, porque olhava para mim e sabia o que eu estava querendo dizer com as melodiasâ, relembrou Ivone, em declaração Ă jornalista Mila Burns.
Com essa sintonia tĂŁo rara, a dupla compĂŽs mais de 200 mĂșsicas. Entre elas, pĂ©rolas como Sonho meu, Acreditar, Alvorecer e Minha verdade. Meu amigo Ălvaro Marechal costuma dizer que Delcio era um âdoce ingĂȘnuoâ. Vez por outra eu o encontrava caminhando de sunga pelo Aterro do Flamengo e entĂŁo lembrava do epĂteto. Em seu exercĂcio matinal, o doce ingĂȘnuo era um igual entre os iguais. Talvez porque todos nĂłs um dia tenhamos sorrido mesmo com o interior em prantos ou visto, em nosso cĂ©u, a estrela-guia se perder. Mas foi ele, Delcio, quem escreveu isso para a gente.